COLUNA: FALANDO DE FAMÍLIA - HERANÇA DIGITAL NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO
AUTORA: Cleomara Cardoso de Siqueira Advogada, formada em Direito, pela Universidade de Marília – UNIMAR (1998), Graduada pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Paraná (1999), pós graduada em Direito Processual Civil – Lato Sensu - pelo Centro Universitário Eurípedes Soares da Rocha de Marília/SP – UNIVEM (2002), pós graduada em Direito Previdenciário – Lato Sensu – pelo Instituto Damásio de Direito IDD – Faculdade IBMEC SP (2022), Coordenadora Regional da Mulher Advogada da OAB/SP (2016/2018) e Presidente da Comissão da Mulher Advogada (desde 2016).
I- INTRODUÇÃO
Com o avanço da internet no mundo as pessoas passaram a se utilizar desse meio não apenas como um instrumento de entretenimento, mas também como instrumento de trabalho, com a finalidade de atingir um maior público ou ao menos facilitar as atividades diárias e profissionais.
Ocorre que com o falecimento do usuário que se utiliza desse instrumento, ele deixa todo acervo digital, cujo bem sequer é regulamentado pelas leis nacionais, tendo em vista que a lei mais recente que poderia tratar do assunto – o Código Civil -, entrou em vigor em 2002, quando a maioria da população sequer imaginava que a internet poderia ser utilizada como um instrumento de trabalho.
Nesse cenário, surge a discussão entre os doutrinadores e juristas de como deve proceder a partilha desses bens quando do falecimento do usuário e qual norma deve ser aplicada analogicamente, tendo em vista a falta de uma regulamentação específica e o crescente número de demandas judiciais envolvendo o assunto.
Dessa forma, busca-se neste trabalho abordar de forma sintetizada as regras análogas no ordenamento jurídico brasileiro para soluções dos conflitos envolvendo plataformas digitais, usuários e interlocutores, com a finalidade de apresentar um meio de solução e compatibilização desses bens no que tange à sucessão causa mortis.
II- AS NORMAS LEGAIS APLICÁVEIS À HERANÇA DIGITAL
A internet é sem dúvida um marco de transformação da humanidade, pois colaborou para várias mudanças de hábitos e comportamentos. E foi através do desenvolvimento de diversas ferramentas pela internet que as pessoas passaram a acumular um acervo de bens digitais, os quais se tratam de bens incorpóreos, intangíveis, processados em dispositivos eletrônicos e que podem ser armazenados em aparelhos e na nuvem.
Esses bens digitais colaboram com a atividade profissional e pessoal do usuário em vida, trazendo fácil acesso ao conhecimento, agilidade e baixo custo nas atividades desenvolvidas, porém, quando há o falecimento desse usuário alguns herdeiros têm reivindicado o acesso desse acervo, inclusive através de demandas judiciais, mas o judiciário, na maioria das vezes, tem negado tais acessos por falta de norma específica e em respeito aos direitos personalíssimos.
Ao longo da sua existência os usuários podem adquirir os bens digitais de cunho (a) patrimonial, que integram os bens economicamente valoráveis; (b) existencial que são bens que não tenham expressividade econômica, mas somente um valor simbólico ou subjetivo, sentimental e; (c) patrimoniais e existencial, que possuem valor econômico e sentimental.
Dentre os bens digitais de valor econômico podemos citar as criptomoedas, os sites e plataformas que permitem adquirir mídias digitais, os domínios de internet, os livros, músicas, filmes, podcasts, as milhas aéreas, os programas de pontos de Bancos pelo uso de cartão de crédito, os Cash Backs, as assinaturas digitais; as coleções de livros e músicas digitais adquiridos no iTunes, os jogos online em que os jogadores investem dinheiro na melhoria das ferramentas e das vantagens, os perfis pessoais e profissionais que por conta de seu engajamento, alcance e visibilidade atraem publicidades, oferecimento de bens e serviços e as contas do YouTube com milhões de inscritos e visualizações.
Já os bens digitais existenciais são as páginas e publicações nas redes sociais sem expressivo número de seguidores, engajamento e visualizações, as contas de e-mails e senhas, os escritos pessoais, as interações com outras pessoas através de mensagens, áudios, as fotos, vídeos, documentos e demais bens digitais sem valor financeiro.
No intuito de amenizar as discussões judiciais algumas plataformas já oferecem opções sobre o uso desse bem digital após o falecimento do usuário, dentre eles: o Google que permite que o usuário escolha até 10 pessoas para receber as informações acumuladas em vida na plataforma; o Twitter que autoriza que os familiares do usuário da conta baixem os tweets públicos e posteriormente solicitem a exclusão do perfil na rede social; o Facebook que permite que seja nomeado um “contato herdeiro” para cuidar da conta da pessoa falecida, possibilitando, inclusive, a transformação do perfil em um memorial e o Instagram que permite que conta do usuário falecido seja removido da plataforma através de solicitação feita por um familiar direto.
O usuário das plataformas digitais pode ainda evitar problemas e discussões aos seus herdeiros deixando um testamento, pois a lei permite que toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte (art. 1.857, Código Civil).
Todavia, a população brasileira ainda trata a morte como um tabu, o que os impede de realizar um planejamento sucessório da pessoa em vida, para que após a morte a partilha de seus bens já esteja resolvido. Por consequência, após o falecimento do usuário das plataformas digitais há uma tendência crescente da solicitação judicial desses acessos e partilha desses bens digitais, por isso chamado pela doutrina de Herança Digital.
Na tentativa de caminhar junto ao progresso da internet foram propostos ao longo dos anos alguns Projetos de Lei (PL 4.099/2012, PL 7.742/2017, PL 8.562/2017 e PL 1.689/2021) que tiveram como objetivo inserir disposições sobre herança digital na legislação brasileira, porém, apenas o Projeto de Lei nº 1.689/2021 se encontra sob análise e, diga-se de passagem, com várias críticas doutrinárias sobre a violação às normas constitucionais, a lei de proteção de dados e a intransmissibilidade do direito de personalidade; já os demais projetos foram arquivados, permanecendo a herança digital à margem da omissão legislativa.
Dessa forma, a legislação brasileira segue sem uma norma específica e enquanto não houver uma lei definindo as regras sobre os bens e a herança digital cabe ao usuário se utilizar das regras de uso das plataformas digitais, que é uma espécie de testamento informal para os bens digitais e do testamento propriamente dito, a fim de evitar as discussões indefinidas e intermináveis perante o judiciário.
III- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo o que foi exposto, verifica-se que a herança digital é uma questão emergente no direito sucessório, com muitos desdobramentos, em função da velocidade com que se criam perfis pessoais e se monetiza bens digitais.
Por tais razões, a população brasileira merece uma legislação fundamentada em opiniões dos juristas e especialistas em Direito das Famílias e Sucessões, a fim de se evitar que seja aprovada uma legislação que não atenda aos anseios da sociedade atual.
Contudo, enquanto não foi aprovada uma lei que regulamente as questões sobre os bens digitais e a herança digital, cabe ao usuário das plataformas digitais se valer das leis já existentes, realizando um planejamento sucessório através de testamento, evitando-se, assim, o risco de ter que aceitar o posicionamento jurisprudencial que traga ao usuário e seus herdeiros conclusões indesejadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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