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MULTIPARENTALIDADE: UMA REALIDADE VISTA ATRAVÉS DO AFETO

16/05/2017

AUTORA: Melrian Ferreira da Silva; Mestre em Teoria Geral do Direito e do Estado no “Centro Universitário Eurípides de Marilia – UNIVEM” (2014), sendo bolsista CAPES/PROSUP. Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pelo “Centro Universitário Eurípides de Marilia – Univem”, Participante do Grupo de Pesquisa em Ética do Afeto (GPEA) e do Grupo Constitucionalização do Direito Processual (CODIP) ambos da instituição “Centro Universitário Eurípides de Marilia – UNIVEM”. Membro do IBDFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família). Advogada.

1. INTRODUÇÃO:

A família contemporâneaapresenta aspectos e nuances em muito diferenciados do modelo tradicional de outros tempos, seja por apresentar novos formatos e arranjos pautados no afeto, seja pela redistribuição de funções doravante desempenhadas por aqueles que integram o núcleo familiar.

Ao se pensar estas novas famílias, suas nuances, dinâmica de convivência e reconhecimento no âmbito social, percebe-se que, ao já conhecido modelo formado por pai, mãe e filhos, tem-se a existência de famílias formadas por apenas um dos pais e seus filhos, apenas por irmãos, avós que assumem a educação e manutenção de seus netos, por casais homoafetivos e seus filhos, pais separados que compartilham a guarda da prole advinda da anterior união, famílias recompostas onde os filhos de um dos cônjuges convivem com os filhos no novo cônjuge ou companheiro de seu pai ou mãe a redimensionar as relações familiares e recriar os laços fraternos entre estes, por vezes entendidos e aceitos como irmãos.  

A família matrimonializada e patriarcal foi, aos poucos, deixando de ser a regra, o modelo único e prevalente, a abrir espaço para famílias mais arejadas fundadas no afeto entre seus membros; o casamento civil ou religioso válido, antes legitimador dos vínculos familiares, hoje convive com a afetividade, ou seja, a vontade de ser e estar em família como um membro, reconhecido e acolhido como tal.

O fato é que mudanças de ordem histórica, social, dos costumes, a globalização entre outros,influenciaramconsideravelmente a visão e sentido que se tem da família na atualidade. O ingresso da mulher no mercado de trabalho, a previsão legal da separação e do divórcio a viabilizar o término da conjugalidade, a assunção de outras formas de viver em família, com certeza coopera à formação de novos arranjos familiares, mas não diminui a importância da família enquanto núcleo de formação e integração do indivíduo. Sua relevância permanece inalterada.

 

2. MULTIPARENTALIDADE: QUANDO O AFETO TEM VOZ

Ao se adentrar o estudo da família e do parentesco no Direito Romano, percebe-se o quanto os laços consanguíneos faziam-se presentes a determinar as relações de descendência que tinham em comum a figura do pater (ascendente comum). O caminhar a passos largos nos faz aportar em nossa legislação civil, que após a Constituição Federal de 1988, consagra em seu artigo 1.523 que o parentesco poderá ser natural ou civil, consanguíneo ou de outra origem.

Esta ultima expressão – ou outra origem -, contida na norma supracitada, enseja detida análise sobre as mudanças advindas a partir da Carta Magna de 1988 em todo o sistema normativo pátrio; mudanças que se fizeram sentir, em especial, com a previsão de princípios constitucionais, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana, a ampliar neste contexto, o que se entende como família. Como bem ensina Guilherme Calmon Nogueira da Gama, ao explanar sobre este princípio - “[...] A dignidade da pessoa humana, colocada como ápice do ordenamento jurídico encontra na família o solo apropriado para o seu enraizamento jurídico e desenvolvimento.”

A família exige proteção por inúmeras razões, mas por ser antes de qualquer outro, o lugar onde oindivíduo exerce o reconhecimento do meio e de si mesmo, desenvolve suas aptidões primeiras, recebe em tese as inicias lições sobre convivência, respeito, valores e limites, solidariedade e afeto. É na família que recebemos, ou deveríamos receber as primeiras manifestações de amor e cuidado, essenciais à formação de qualquer ser humano.

Assim, vislumbra-se que embora separados os cônjuges, permanecem os filhos formando com seus pais uma família com nova configuração; esta realidade, corriqueira na sociedade, não causa qualquer espanto ou questionamento. Muitos são os filhos que convivem com um ou ambos os pais após o divórcio dos mesmos. Tema que tem permeado debates e estudos entre doutrinadores, e sobre o qual os Tribunais por vezes são chamados a se manifestar, reporta-se diretamente a situação fática em que os filhos do primeiro casamento ou união estável de um dos cônjuges são acolhidos e tratados como filhos pelo novo cônjuge daquele.

Há padrastos e madrastas, chamados por alguns autores de pais e mães de afeto, que têm para com seus enteados um sentimento genuinamente paternal ou maternal; assumem como seus os filhos do cônjuge ou companheiro, não medindo esforços quanto à educação, manutenção, auxílio moral e material destes. Em alguns casos, os laços de afeto estabelecidos entre enteados e padrastos é tão forte que chegam a tratar-se por pai e filho. Não há imposições no estabelecimento desta realidade, apenas a existência do amor e do afeto, melhor explicados pela psicanálise. Como bem nos lembra May “[...] Todos precisam de amor; muitos o encontram, mas poucos o vivem.”

Por vezes, fundada nesta relação de amor paterno-filial alguns padrastos ou madrastas desejam reconhecer esta paternidade (maternidade) socieoafetiva; a questão que se formula é saber se esta poderá conviver com uma paternidade biológica preexistente ou, se esta última seria elemento impeditivo ou excludente doreconhecimento desta paternidade socioafetiva. Por fim, em havendo o reconhecimento da multiparentalidade (mais de um pai ou mãe), quais seus efeitos na esfera sucessória? 

Ante a tais indagações, tem os Tribunais se manifestado no sentido do reconhecimento da multiparentalidade, conforme se depreende do RE 898.060/SC, onde o presente julgado deixa claro que a existência de uma filiação biológica não exclui a filiação socioafetiva e vice-versa, incluindo-se os efeitos jurídicos inclusive os sucessórios, alimentícios, de visitação e guarda compartilhada. Imperioso lembrar que tal posicionamento vem sendo adotado quanto ao reconhecimento da multiparentalidade em relação à casais homoafetivos que através de técnicas de reprodução humana assistida realizam o projeto parental de constituir uma família com filhos. Estes poderão ser registrados em nome de seus dois pais ou de suas duas mães.

A multiparentalidade mais do que objeto de estudos vem conferir visibilidade e dignificar relações familiares antes relegadasao descaso do legislador, seja pela anterior primazia conferida a origem biológica, seja pelo preconceito existente na sociedade. Hoje, a multiparentalidade vem a ser uma justa e afetuosa adequação da realidade ao Direito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANGELUCCI, Cleber Affonso. Valor jurídico do afeto nas relações do direito de família: construção do saber jurídico. Marília, 2006. Dissertação de Mestrado em Teoria do Estado e do Direito. Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM.

Aristóteles. Ética a Nicômaco – Coleção os Pensadores. Vol. II. 4.ª ed. São Paulo: Nova Cultural. 1.991.

BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos da família: dos fundamentais aos operacionais, in GROENINGA, Giselle Câmara (Coord.). PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. 1.ª ed. São Paulo: Saraiva. 2013.

BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 2004.

CASSETARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidadesocioafetiva: efeitos jurídicos. 1.ª ed. São Paulo: Atlas. 2014.

GAMA, Guilherme Calmon da. Das relações de parentesco. inDIAS, Maria Berenice (Org.). PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Direito de família e o novo código civil.  3.ª ed. Belo Horizonte: Del Rey. 2003.

GIMENO. Adelina. A família: o desafio da diversidade. Trad.ChrysChrystelli. 1.ª ed.Lisboa: Instituto Piaget. 2001.

MAY, Simon. Amor: uma história. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. 2012.     

 

 

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