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O MARKETPLACE E A SUA RESPONSABILIZAÇÃO TRIBUTÁRIA

03/10/2022

AUTOR: Dr Renato Confolonieri, membro da Comissão de Direito Tributário

Temos visto cada vez mais a migração das empresas para o modelo de venda de mercadorias por meio de plataformas digitais, numa tentativa de alcançarem maior mercado, contribuindo para a sua sobrevivência e manutenção de suas atividades.

 

Nesse contexto, o marketplace é um modelo de negócios no qual vendedores independentes anunciam e vendem seus produtos em uma espécie de shopping center virtual, com a intermediação pela plataforma no qual estão hospedados.

 

Como esse modelo de negócios cresceu abundantemente nos últimos tempos – tendo inclusive aumentado com a ocorrência da pandemia –, alguns Estados brasileiros implementaram alterações nas suas legislações internas para, dentre outras novidades, responsabilizar empresas desse ramo por eventuais débitos de ICMS atribuíveis aos estabelecimentos comercializadores/lojistas que deixarem de cumprir com as suas respectivas obrigações tributárias.

 

Estados como Paraíba, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Rio de Janeiro e São Paulo atribuem responsabilidade aos marketplaces pela mera intermediação de negócios, conferem tal responsabilidade nas hipóteses de não emissão de documento fiscal pelo vendedor das mercadorias, ou responsabilizam as plataformas em caso de não prestação de informações quanto às operações intermediadas por elas.

 

Além de dificultar ou inviabilizar as atividades tratadas no âmbito desses Estados, caminhando de modo contrário ao desenvolvimento das operações virtuais, a tentativa de responsabilização tributária dessas empresas, sob a justificativa de garantir a arrecadação estadual e evitar a sonegação do ICMS, é de constitucionalidade e legalidade bastante questionáveis, uma vez que na maioria das hipóteses ultrapassam os limites estabelecidos pela Constituição Federal e pelo Código Tributário Nacional-CTN.

 

Inicialmente, vale lembrar que a Constituição Federal (artigo 146, inciso III, b) dispõe que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria tributária, inclusive no que diz respeito à obrigação tributária. Por essa razão, é pacífico o entendimento de que apenas lei complementar pode atribuir hipóteses de responsabilidade pelo tributo – em recente julgamento, ao analisar lei do Estado do Mato Grosso que atribuía responsabilidade a terceiros pelo ICMS devido em operações para as quais tivessem intervindo “ativa ou passivamente”, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de fixar a tese de que “é inconstitucional lei estadual que disciplina a responsabilidade de terceiros por infrações de forma diversa da matriz geral estabelecida pelo Código Tributário Nacional” (ADI nº 4.845/DF, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Roberto Barroso, DJ 04.03.2020, sendo o mesmo entendimento exposto na decisão da ADI nº 6.284/GO, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Roberto Barroso, DJ 24.09.2021).

 

Quanto ao CTN, o seu artigo 124 expressa que poderão ser solidariamente obrigados ao cumprimento da obrigação as pessoas que tiverem interesse comum à situação fática relacionada ao fato gerador, bem como aquelas expressamente designadas por lei (incisos I e II).

 

Além disso, no que se refere à possibilidade de atribuição de responsabilidade a terceiros por transferência, o CTN é expresso no sentido de não somente exigir previsão em lei, como, ainda, que o terceiro em questão esteja necessariamente vinculado ao fato gerador da respectiva obrigação (artigo 128).

 

Com relação à atribuição de responsabilidade tributária com base em eventual “interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal” (CTN, art. 124, inciso I), o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o “interesse comum” implica em que as pessoas solidariamente obrigadas “sejam sujeitos da relação jurídica que deu azo à ocorrência do fato imponível” (REsp nº 884.845/SC, Rel. Ministro Luiz Fux, DJe 18.02.2009; RE nº 1.840.920/PB, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 05.02.2020; AgRg no AREsp nº 603.177/RS, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 27.03.2015, dentre tantos outros) ou “pessoas que se encontram no mesmo polo do contribuinte em relação à situação jurídica ensejadora da exação, no caso, a venda da mercadoria” (AREsp nº 1.198.146/SP, 1ª Turma, Rel. Ministro Gurgel de Faria, DJ 18.12.2018; AgInt no AREsp nº 1.312.954/GO, 1ª Turma, Rel. Ministro Gurgel de Faria, DJe 24.05.2021).

 

No que se refere à imputação de responsabilidade solidária às “pessoas expressamente designadas em lei” (CTN, art. 124, inciso II), ou por transferência, igualmente de modo expresso e por lei (CTN, art. 128), essa atribuição se restringe apenas àquelas pessoas vinculadas ao fato gerador da obrigação tributária e que tenham agido ativamente para o seu não cumprimento (dolo), como julgou o Supremo Tribunal Federal no RE nº 562.276/PR (Tribunal Pleno, Rel. Ministra Ellen Gracie, DJ de 10.02.2011), esclarecendo que tal atribuição a terceiros por expressa designação legal “não autoriza o legislador a criar novos casos de responsabilidade tributária, sem a observância dos requisitos exigidos pelo artigo 128 do CTN”.

 

Nesse caso, a Suprema Corte foi categórica ao afirmar que, além da previsão legal, os terceiros aos quais se busca imputar responsabilidade tributária devem estar necessariamente “em posição de contato com o fato gerador ou com o contribuinte”, de modo que somente podem ser responsabilizados “na hipótese de descumprimento de deveres próprios de colaboração para com a Administração Tributária” e “desde que tenham contribuído para a situação de inadimplemento pelo contribuinte”.

 

No que se alude à responsabilização dos marketplaces por mera intermediação ou por ausência de emissão de notas fiscais pelos vendedores, tem-se que, no primeiro caso, inexiste qualquer interesse jurídico comum na situação que resulta no surgimento da obrigação tributária, uma vez que essas empresas não são sujeitos dessa relação jurídica, mas meros intermediários, canais facilitadores de tais operações.

 

Já quanto à responsabilização pela ausência de emissão de notas fiscais pelos vendedores, o raciocínio vai no mesmo sentido, ou seja, a relação jurídica de compra e venda de mercadorias, isto é, a situação que efetivamente resulta do fato imponível, tem como sujeitos apenas o lojista e o consumidor final, razão pela qual é inaplicável no caso a hipótese prevista no artigo 124, inciso I do CTN, eis que a plataforma (intermediadora de negócios) não tem “interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”.

 

E pelo mesmo motivo não pode ser justaposta aos marketplaces a “solução” encontrada por certos Estados – atribuição de responsabilidade tributária a essas empresas mediante inclusão de expressa previsão legal nesse sentido nas legislações ordinárias estaduais, justificando a sua suposta constitucionalidade/legalidade nas disposições dos artigos 124, inciso II, e 128, ambos do CTN. Por serem meros ambientes ou plataformas onde produtos e serviços são anunciados e negociados diretamente por terceiros, os marketplaces devem ser simplesmente equiparados aos administradores de shopping centers, não possuindo qualquer relação com o fato gerador do tributo estadual nas operações praticadas.

 

Por fim, e no que atina à ausência de prestação de informações atribuíveis aos marketplaces, a legislação estadual impõe a responsabilização pelo ICMS como uma consequência – na verdade, sanção – ao não cumprimento de obrigação acessória (prestação de informações) imputada às plataformas, necessária ao efetivo desempenho da atividade fiscalizatória.

 

No nosso entendimento, essa espécie de responsabilização poderia encontrar suporte nos já citados artigos 124, inciso II, e 128, todos do CTN. Isso porque o artigo 113, § 2º do mesmo diploma possibilita a instituição de deveres instrumentais ou acessórios em atenção ao interesse de arrecadação ou fiscalização de tributos, fato que se coaduna com as informações solicitadas aos marketplaces nesse cenário, permitindo às autoridades competentes que tenham acesso às operações realizadas por terceiros, com intermediação das plataformas.

 

E mais. A jurisprudência tem caminhado no sentido de exigir a verificação da existência de atuação dolosa do terceiro a quem se busca atribuir responsabilidade, ou seja, a demonstração de que o não cumprimento de determinada obrigação tributária decorra de atos por ele (terceiro) praticados. Nessa hipótese, a eventual ausência de recolhimento de ICMS pelo vendedor – a princípio, sem qualquer responsabilidade pelas plataformas – somente não seria cobrado do real contribuinte pela total e absoluta ausência de meios para tanto, notadamente diante de deficiência de informações que deveriam, dados os deveres instrumentais estipulados pela legislação ser prestados pelos marketplaces.

 

Diante de todo o exposto, cumprindo-se adequadamente os eventuais deveres de prestação de informações na extensão daquilo que cabe aos marketplaces (relação que mantém com seus clientes, comprador e vendedor da operação de compra e venda realizadas sem sua ingerência), não existe qualquer vínculo ou relação que justifique a imputação de responsabilidade às empresas intermediadoras por obrigações tributárias resultantes de atividades desenvolvidas apenas pelos lojistas (terceiros).

 

Sendo assim, a atribuição de responsabilidade intentada recentemente por alguns Estados nessas ocasiões se mostra inconstitucional e ilegal.

 

 

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