IVETTE SENISE FERREIRA Proteção do meio ambiente urbano e cultural
I – INTRODUÇÃO:
A tutela do
meio ambiente pela ordem jurídica na atualidade funda-se num conceito
extremamente alargado de meio ambiente , que conjuga na noção de patrimônio ambiental
nacional tanto o meio ambiente natural quanto o
meio ambiente cultural.
Basicamente, o meio ambiente natural é aquele constituído pelos elementos que
condicionam a vida num grupo biológico nos três reinos: animal, vegetal e
mineral. Meio ambiente cultural é o que se constitui pela interação entre o
ambiente natural e os espaços construídos ou edificados pelo homem.
Alguns autores, como José Afonso da Silva, preferem distinguir três
classes de meio ambiente: I – o meio ambiente natural , constituído pelo
solo, a água, o ar atmosférico, a flora; II – o meio ambiente artificial,
constituído pelo espaço urbano construído e pelos equipamentos públicos (ruas,
praças, áreas verdes em geral); III – o meio ambiente cultural, integrado
pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico,
turístico, que embora artificial difere do anterior pelo sentido de valor
especial que adquiriu ou de que se impregnou.
A proteção jurídica ambiental, como sabemos, teve início na preocupação com os recursos naturais, principalmente a água e o solo, embora dirigida apenas à conservação desses bens para a sua utilização pelo homem, sem levar em conta a necessidade da manutenção dos processos ecológicos em geral. Através de Acordos e Tratados buscou-se então, na ordem internacional, disciplinar a utilização dos bens da natureza para evitar os danos que se refletiriam na saúde, no bem-estar ou no patrimônio dos indivíduos em particular, estabelecendo-se regras para a apuração da responsabilidade individual ou coletiva, aos poucos direcionando as legislações no plano nacional, especialmente após a Declaração de Estocolmo de 1972, produzida em Conferência Internacional da ONU.
II – A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS BENS CULTURAIS.
À medida que crescia a preocupação com os problemas globais que se
relacionam com a sadia qualidade de vida e com a conservação do ambiente para
as futuras gerações, que a Declaração de Estocolmo recomendava, a legislação
ambiental passou também a orientar-se ao ambiente construído ou modificado pelo
homem. Igualmente aqui a regulamentação do meio ambiente construído
subdivide--se em vários ordenamentos jurídicos, a saber: saneamento,
ordenamento urbano, atividades industriais, de transporte, lazer, habitação,
artes e cultura, tendo como característica comum a regulamentação das diversas
atividades humanas que participam da criação ou conservação do referido
ambiente, na medida em que essas possam provocar impactos adversos seja para o
meio natural seja para os seres humanos ou para o próprio ambiente criado. Daí
a sua inclusão na categoria dos interesses metaindividuais, denominados
interesses difusos, que seguramente abrangem o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, mencionado pela Constituição Federal no seu artigo
225.
Assim, estruturado como um direito fundamental da pessoa humana e também de
toda a coletividade, o meio ambiente apresenta-se como um complexo articulado e
harmônico de recursos naturais e de valores culturais, integrados na noção de
patrimônio ambiental nacional, a ser preservado no interesse desta e das
futuras gerações. Essa idéia foi consubstanciada em vários princípios e
documentos internacionais que afirmam a necessidade de estabelecer-se um
sistema de proteção da herança cultural e natural de valor universal , afim de
proporcionar-se aos homens as condições de vida e bem-estar adequados, em
ambiente sadio que eles devem sempre conservar e melhorar no interesse da
sobrevivência da própria civilização.
Já antes mesmo da Declaração de Estocolmo, a Conferência Geral da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO),
reunida em Paris, de 12 de outubro a 14 de novembro de 1970, em sua
décima-sexta sessão, tinha aprovado uma Convenção sobre as medidas a
serem adotadas para proibir e impedir a importação, exportação e transferência
de propriedade ilícitas dos bens culturais, na qual, embora se
estabeleça que a definição precisa dos bens culturais que merecem tutela é da
competência de cada Estado, foi apresentada no seu artigo 1º uma lista, não
exaustiva, dos bens que merecem a atenção da comunidade internacional e,
portanto, o controle dos Estados para garantir a sua sobrevivência.
Para os fins dessa Convenção, a expressão “bens culturais”, significa
quaisquer bens que, por motivos religiosos ou profanos, tenham sido
expressamente designados por cada Estado como de importância para a
arqueologia, a pré-história, a história, a literatura, a arte ou a ciência, e
que pertençam às seguintes categorias:
a) as coleções e exemplares raros da zoologia, botânica, mineralogia e anatomia, e objetos de interesse paleontológico;
b) os bens relacionados com a história, inclusive a história da ciência e da tecnologia, com a história militar e social, com a vida dos grandes estadistas, pensadores, cientistas e artistas nacionais e com os acontecimentos de importância nacional;
c) o produto das escavações arqueológicas (tanto as autorizadas quanto as clandestinas) ou de descobertas arqueológicas;
d) os elementos procedentes do desmembramento de monumentos artísticos ou históricos e de lugares de interesse arqueológico;
e) antiguidades de mais de cem anos, tais como inscrições, moedas e selos gravados;
f)
objetos de interesse etnológico;
g) os bens de interesse artístico, tais como:
1. quadros, pinturas e desenhos feitos inteiramente a mão sobre qualquer suporte e em qualquer material (com exclusão dos desenhos industriais e dos artigos manufaturados e decorados a mão);
2. produções originais de arte estatutária e de escultura em qualquer material;
3. gravuras, estampas e litografias originais;
4.
conjuntos e montagens artísticas em
qualquer material.
h) manuscritos raros e incunábulos, livros, documentos e publicações antigos de interesse especial (histórico, artístico, científico, literário, etc.), isolados ou em coleções;
i) selos postais, fiscais ou análogos, isolados ou em coleções;
j) arquivos, inclusive os fonográficos, fotográficos e cinematográficos;
k) peças de mobília de mais de cem anos e instrumentos musicais antigos.
Esse documento, depois de afirmar que a cooperação
internacional constitui um dos meios mais eficientes para proteger
os bens culturais contra os atos de importação, exportação e transferência de
propriedade ilícitas , exorta os Estados membros a assumirem vários
compromissos para defendê-los, em conformidade com a legislação nacional
respectiva.
A definição de bens culturais adotada por essa Convenção, que foi
promulgada no Brasil pelo Decreto n. 72.312, de 31 de maio de 1973, serviu mais
tarde de referência para a Convenção da UNIDROIT sobre bens culturais roubados
ou ilicitamente exportados , de 24 de junho de 1995, assinada em Roma,
que entrou em vigor em 1o. de julho de 1998, a qual instituiu
as regras mínimas para a restituição, ou retorno e compensação aos
Estados de origem, de bens culturais ilicitamente subtraídos ou transacionados.
Em seqüência, no mesmo ano da Declaração de Estocolmo, os bens culturais foram
objeto de uma Convenção Internacional relativa à Proteção da Herança Universal
Cultural e Natural, firmada em Paris, em 1972, da qual o Brasil foi
signatário, com a finalidade de “estabelecer um sistema de proteção à herança
cultural e natural de valor universal, organizado de forma permanente e de
acordo com os modernos métodos científicos”.
Essa Convenção teve seu texto aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo n.
74, de 1977, e foi promulgada pelo Decreto n. 80.978, de 12 de dezembro de
1977, com importantes reflexos na conceituação dos bens culturais
posteriormente acolhida pela Constituição brasileira promulgada em 1988, alem
de propiciar que muitos sítios culturais de nosso país passassem a constituir patrimônio
cultural da humanidade , como bem salientou Guido Fernando da Silva
Soares (“Direito Internacional do Meio Ambiente”,S.Paulo, Ed.Atlas, 2001,
p.133).
Consolidou-se , assim, a internacionalização da questão ambiental, e dos
debates que se seguiram nas últimas décadas do século XX nos foros
internacionais foi consagrado um novo conceito: o de interesse comum da
humanidade, que influenciou a ampliação dos interesses juridicamente
tutelados, relacionando-se com outros, próprios do direito internacional, entre
os quais o de herança comum da humanidade e o de patrimônio comum da
humanidade, que levam em consideração a existência de legítimos
interesses difusos da humanidade como um todo, em relação a fatos ou ações que
possam afetar a sobrevivência da espécie humana sobre a Terra. Como
decorrência, a expressão patrimônio cultural da humanidade , foi adotada
no texto de várias convenções e recomendações internacionais para indicar os
bens culturais que merecem a atenção da comunidade internacional e que,
portanto, devem ser universalmente protegidos.
Entre os inúmeros documentos de proteção internacional, é importante mencionar
ainda a Convenção sobre a Proteção da Herança Arqueológica, Histórica e
Artística das Nações Americanas ( Convenção de San Salvador), firmada
em Santiago, em 1976, não vigente no Brasil mas que recebe deste o apoio, bem
como o Tratado para a Proteção das Instituições Científicas e Artísticas e
Monumentos Históricos, adotado em Washington no âmbito da antiga União
Pan-americana, em 1935.
Por outro lado, a UNESCO emitiu durante toda a segunda metade do século XX, inúmeras Recomendações, destinadas a estabelecer padrões internacionais de proteção a serem seguidos pelos Estados, através de suas próprias leis, bem como a servirem de instrumentos de interpretação das convenções firmadas entre os mesmos. As mais importantes foram aquelas relativas a:
- princípios internacionais a serem aplicados às excavações arqueológicas, em 5 de dezembro de 1956;
- proteção da beleza e do caráter dos lugares e paisagens, em 11 de dezembro de 1962;
- medidas direcionadas a proibir e impedir a exportação, importação e transferência de propriedade ilícitas de bens culturais, em 19 de novembro de 1964;
- conservação de bens culturais que a execução de obras públicas ou privadas possam colocar em perigo, em 19 de novembro de 1969;
-
intercâmbio internacional de bens
culturais, em 26 de novembro de 1976.
Todos esses documentos e recomendações internacionais ,
sem dúvida alguma, constituíram a base ou inspiraram as leis de proteção ao
patrimônio cultural que se seguiram, nos vários países, como aconteceu na
França, com a Lei de proteção ao patrimônio construído , de 1977, a Lei
sobre o patrimônio arquitetônico e urbano , de 1983, e o Código de
Urbanismo ( Lei 110/83), cujo art. 110 declara que o território francês
constitui patrimônio comum da nação.
Também o legislador brasileiro passou a dispensar especial atenção à tutela jurídica integral do patrimônio nacional nos seus dois aspectos referidos: patrimônio natural e patrimônio cultural , sobretudo no âmbito constitucional, com a ampla caracterização feita na Constituição Federal de 1988, que alargou os conceitos tradicionais vigentes até então.
III - O PATRIMÔNIO CULTURAL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.
Seguramente a Convenção de Paris de 1972, que foi
promulgada no Brasil pelo Decreto n. 80.978, de 12-12-1977, bem como a anterior
de 1970, lançaram as bases para o aperfeiçoamento da noção de patrimônio
histórico, cultural e paisagístico que vinha sendo referida nas Constituições
brasileiras anteriores, culminando no tratamento que lhe foi dado pela
Constituição federal de 1988, que se refere à “proteção do patrimônio
histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (art. 24,VII) para
estabelecer a competência legislativa concorrente da União, Estados e
Distrito Federal. A enumeração decorre da definição de patrimônio cultural
estabelecida no seu art. 216, V, que inclui “os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico.”
(Cf. art. 216 CF).
Anteriormente, na legislação
brasileira, uma conceituação já havia sido dada no Decreto-lei n. 25, de
30.11.37, que disciplinou o tombamento de bens que constituem o patrimônio
histórico e artístico nacional, considerando-o,no seu art. 1o., como “
o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja
de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do
Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico.” Esse conceito já era estendido no
parágrafo 2o. desse mesmo artigo, que preceituava: “Equiparam-se
aos bens a que se refere o presente artigo, e são também sujeitos a tombamento,
os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe
conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela
natureza ou agenciados pela indústria humana”.
Produziu-se, pois, na atualidade, um alargamento do conteúdo de patrimônio
cultural, que alem de englobar esse patrimônio histórico e artístico
referido incluiu outros bens que justificam a ampla tutela jurídica que
deve ser concedida a todas as espécies que compõem o gênero “patrimônio
cultural”.
De fato, a Constituição de 1988 estabeleceu no seu art. 216 que:
“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações artísticas, científicas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
E dispõe ainda esse mesmo artigo, no seu parágrafo 4o.: “Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.”
Produziu-se então uma identificação valorativa dos complexos de bens que
integram o patrimônio ambiental da Nação, em que se conjugam duas categorias: o
patrimônio natural e o patrimônio cultural, que se relacionam também com o
legado das gerações que nos precederam e que devemos transmitir intactos
para as que nos sucederem.
A legislação ambiental que nos vários países se seguiu à Declaração de
Estocolmo, nos anos 70 e 80 do século passado, realizando a adoção dos
seus princípios no plano interno, numa primeira fase foi caracterizada pela
proteção dispensada aos recursos da natureza, diversificados em complexos
referidos como patrimônio biológico, genético, rural, florestal vegetal,
mineral, etc. No Brasil, a Lei n. 6.938/81 mencionava realizar a tutela
legal de bens ambientais naturais, tais como: “a atmosfera, as águas interiores
, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o
sub-solo e os elementos da biosfera.”
Numa segunda fase, com a crescente preocupação com os problemas globais
relativos à sadia qualidade de vida e a necessidade de conservar o meio
ambiente para transmiti-lo às futuras gerações, a legislação brasileira,
seguindo a tendência já manifestada em outros países, passou a contemplar
também o ambiente construído ou modificado pelo homem nos seus vários aspectos:
de saneamento, atividades industriais, transportes, habitação, urbanismo,
turismo, lazer e, também, artes e cultura em geral.
Na verdade tornou-se difícil fazer uma separação nítida entre bens que integram
o patrimônio natural e os que integram o patrimônio cultural, tal o
entrelaçamento entre as duas categorias, promovido pelas próprias leis, como
foi, aliás, o caso da equiparação realizada pelo mencionado parágrafo 2o.
do art. 1o. do Decreto n. 25/37, disciplinando a possibilidade
de seu tombamento.
Igualmente a Lei n. 3.924/61, ao caracterizar os monumentos arqueológicos ou
pré-históricos, incluiu os “sítios nos quais se encontram vestígios positivos de
ocupação pelos paleoameríndios”, os “locais de pouso prolongado ou de
aldeamento”, e outros que se confundem com as áreas naturais.
Na tutela jurídica exercida conjuntamente passou-se a utilizar então a expressão bens naturais e culturais , ou expressões equivalentes. Tal como fez a Lei n. 6.513/77 ao criar as áreas especiais de interesse turístico e os locais de interesse turístico, conceituando aquelas como trechos do território nacional “a serem preservados e valorizados no sentido cultural e natural, destinados à realização de planos e projetos de desenvolvimento turístico”, e estes como trechos que, por sua adequação ao desenvolvimento de atividades turísticas são destinados à realização de projetos específicos, considerando-se de interesse turístico os bens de valor cultural e natural protegidos por legislação específica, entre os quais enumera, no seu art. 1o., os bens de valor histórico, artístico, arqueológico ou pré-histórico, as manifestações culturais ou etnológicas nos locais onde ocorram, as paisagens notáveis, etc.
IV - O PATRIMÔNIO CULTURAL E O DIREITO PENAL.
Depois de afirmar a natureza fundamental do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, e de indicar a necessidade da defesa e preservação
desses bens para as presentes e futuras gerações, a Constituição Federal de
1988 enfatiza, no parágrafo terceiro do art. 225 que
“as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores ,
pessoas físicas e jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar o dano.”
Foi, assim, inquestionavelmente recomendada a intervenção penal em todas as
questões referentes a atuações lesivas ao meio ambiente, entre elas as
que são dirigidas contra os bens que integram o patrimônio cultural, da
mesma forma em que essa tutela é reclamada, como ultima ratio
da proteção jurídica, para a garantia efetiva de outros direitos humanos
fundamentais que a Constituição enumera, atestando a gravidade do problema e a
sua importância para o ordenamento jurídico.
A inadequação, porém, da legislação penal para essa missão salvadora do
patrimônio cultural evidenciava-se pelas deficiências de suas normas que
ou não tinham sido destinadas a essa finalidade específica, como as do
Código Penal de 1940, ainda em vigor, ou inexistiam na legislação penal
especial não tendo até então ultrapassado nesse campo os confins do
Direito Administrativo.
De fato, a Lei n. 3.924/61, que estabeleceu a proteção dos monumentos
arqueológicos e pré-históricos, não incluiu qualquer tipificação penal, mas
estabeleceu, no seu art. 5o. que: “Qualquer ato que importe na
destruição ou mutilação dos monumentos a que se refere o art. 2o.
desta lei será considerado crime contra o Patrimônio Nacional e, como tal,
punível de acordo com o disposto nas leis penais.” E aduz, no
art. 29: “Aos infratores desta lei serão aplicadas as
sanções dos artigos 163 a 167 do Código Penal, conforme o caso, sem prejuízo de
outras penalidades cabíveis.”
A Lei n. 4.845, de 19-11-65, que “proíbe a saída para o exterior de obras
de arte e ofícios produzidos no País até o período monárquico “, também
constitui mera limitação à disposição da propriedade móvel através da restrição
à sua circulação, que se integra na tutela administrativa do patrimônio
cultural.
Igualmente a Lei 7.661/88, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento
Costeiro como parte da Política Nacional do Meio Ambiente, e que estabelece,
sem fazer qualquer tipificação penal, que tendo em vista o zoneamento de usos e
atividades na zona litorânea, deve ser prioritária a conservação e a proteção
não somente dos recursos naturais da área, mas também a dos sítios ecológicos
de relevância cultural, bem como a dos monumentos que integrem o patrimônio
natural, histórico, paleontológico, espeleológico, arqueológico, étnico,
cultural e paisagístico.
Essas lacunas remetiam forçosamente a tutela do patrimônio cultural para o
Código Penal, onde, à falta de tipos especificamente ambientais, ficava situada
entre os crimes patrimoniais, basicamente entre as várias espécies do delito de dano.
Deixando a figura prevista no art. 163 ( dano simples e forma
qualificada) como hipótese subsidiária, restavam apenas as possibilidades dos
arts. 165 e 166 para o enquadramento das condutas ofensivas ou danosas
aos bens culturais aqui referidos. A primeira, intitulada dano em coisa de
valor artístico, arqueológico ou histórico, consistente em “destruir,
inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade competente em virtude de
valor artístico, arqueológico ou histórico”,tinha o seu alcance
bastante limitado pela referência feita ao tombamento do objeto material do
delito, e hoje está revogada pela nova disposição a esse respeito trazida
na Lei 9.605/98. A segunda, com o nome de alteração de local especialmente
protegido, embora inspirada no modelo italiano que cuida da
“alteração de paisagem”, não faz, diferentemente deste, uma menção expressa à
qualidade estética do bem jurídico protegido. O legislador brasileiro preferiu
falar em “alteração de local”, ao invés de limitar-se à alteração das belezas
naturais, o que deu maior amplitude à proteção legal que assim foi oferecida
também à paisagem urbana, compreendendo os conjuntos de edificações, ou outras
obras acrescentadas pelo homem à natureza, que apresentem valor artístico ou
cultural, além de estético.Isso, aliás, ficou bem claro na redação que lhe deu
a Nova Lei dos Crimes Ambientais, n.9.605/98, que aprimorou o dispositivo ,
revogando - o .
Ao dispor sobre o ordenamento urbano e o patrimônio cultural, instituindo a sua
tutela, essa lei revogou os citados artigos 165 e 166 do Código Penal,
substituindo-os por quatro figuras penais que ampliaram a proteção
anteriormente dispensada a esses valiosos bens ambientais.
No art.62 cuida-se da destruição, inutilização ou deterioração de bens de duas
categorias diferentes: a primeira refere-se a qualquer bem indistintamente,
desde que protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial (
casas tombadas, monumentos históricos, árvores de preservação permanente,
sítios de beleza rara, ou até mesmo quadros que estejam tombados); a segunda
categoria é constituída por bens expressamente referidos, em que se presume
haja interesse público, desde que também estejam protegidos por lei, ato
administrativo ou decisão judicial ( arquivo, museu, biblioteca, pinacoteca,
instalação científica ou similar). Identifica-se com o crime de dano do Código
Penal, subentendendo a existência de efetiva lesão , a exigir a prova pericial,
mas dele discrepa por admitir a forma culposa, quando então pode resultar na
transação da Lei 9.099/95, uma vez que a pena máxima é de um ano de detenção.
Na forma dolosa, com a pena de 1 a 3 anos de reclusão e multa, admitirá a
suspensão, prevista na lei mencionada. Como o sujeito passivo do delito
é, em primeiro lugar, a coletividade, até mesmo o proprietário poderá estar
incurso na ação típica incriminada, culposa ou dolosamente praticada. Apesar de
ser de natureza instantânea, o delito em questão admite tentativa, quanto o
agente, por circunstâncias alheias à sua vontade, não consegue destruir,
inutilizar ou deteriorar o bem.
O tipo do art. 63, que revogou o art. 166 do Código Penal, dispôs de forma mais
ampla e completa o que pretendia, tal seja: “alterar o aspecto ou a estrutura de
edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou
decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico,
artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou
monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a
concedida.” No conceito, embora não mencionados expressamente,
estão incluídos, evidentemente, os sítios de valor paleontológico, relativos
aos fósseis, que são também valores culturais, bem como os de natureza
espeleológica, que são os relativos a grutas, cavernas e outras cavidades
naturais subterrâneas, os quais constituem relevantes ecossistemas.
A pena é agora mais gravosa, de reclusão de 1 a 3 anos e multa, mais condizente
com a gravidade da conduta lesiva e as conseqüências que pode provocar, sendo
porém passível de substituição por pena restritiva de direitos, conforme o
disposto no art. 7o. É ação que pode ser cometida por pessoa
jurídica, quando a pena a ser-lhe aplicada poderá orientar-se com vantagem à
recuperação ou refazimento das áreas alteradas. A competência para a ação, que
é pública, incondicionada, deve ser regulada pela titularidade do bem alterado:
se pertencente à União, dela for o tombamento ou a decisão judicial, competente
será a Justiça Federal; nas demais hipóteses, a Estadual. É cabível a
suspensão do processo, e a reparação do dano será condição básica, segundo
dispõe a Lei n. 9.099/95.
No art. 64 a Lei apresenta uma inovação ao punir a construção irregular, em
solo não edificável e seu entorno, que antes era infração administrativa,
passível apenas de embargo ou demolição: “Promover construção em solo não
edificável ou no seu entorno, assim considerado em razão do seu valor
paisagístico, ecológico, artístico, turístico, histórico, cultural, religioso,
arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização ou em desacordo com a
concedida. Pena: detenção de seis meses a um ano , e multa.” A
autorização da autoridade competente é elemento normativo do tipo, o qual só
existe na forma dolosa. A ação, pública incondicionada, será de competência da
Justiça Federal se a área protegida pertencer à União, por ela tiver sido
tombada, ou se a decisão for de juiz federal. Será imprescindível a prova
pericial, e tendo pena máxima de 1 ano de detenção, é admissível a transação
prevista na Lei n. 9.099/95. É cabível na sua imputação à pessoa jurídica,
segundo o art. 3o. da Lei 9.905/98.
A derradeira figura desse elenco é constituída pela ação de “pichar,grafitar,
ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano”, constante
do art. 65 da lei ambiental, que comina ao seu autor a pena de detenção
de três meses a um ano e multa, sendo porém de seis meses a um ano, alem da
multa, se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada, em virtude de seu
valor artístico, arqueológico ou histórico, conforme dispõe o parágrafo único
do mesmo artigo.
O objetivo aqui é a proteção de edificações comuns e monumentos situados em
logradouros públicos ou a céu aberto, como estátuas, bustos, chafarizes,
obeliscos e outros marcos, freqüentemente alvos de vandalismo e de ações
que os desfiguram ou enfeiam, quando não os danificam irreversivelmente.Embora
o conceito de monumento possa também abranger os bens naturais e
até cidades inteiras, não são eles os objetos da ação aqui prevista , podendo a
sua tutela estar estabelecida em outros tipos penais do mesmo diploma legal.
A ação, que deve ser dolosa,pode ter qualquer objetivo mesmo político ou
propagandístico, excetuando-se as manifestações artísticas dos chamados
grafiteiros, que não conspurcam mas sim embelezam certas áreas, impedindo
mesmo que sejam pichadas. De qualquer forma, tratando-se de infração de
menor potencial ofensivo, submete-se ao procedimento da Lei n. 9.099/95,
podendo dar margem à uma reparação do dano a ser privilegiada como medida
educativa.
Embora sejam apenas essas as hipóteses acolhidas pela Lei ambiental para uma
retribuição penal na área da tutela do patrimônio cultural, essas inovações
foram significativas para preencher o vazio anteriormente existente no âmbito
legislativo para a proteção dessa espécie de bens jurídicos. O seu
aperfeiçoamento, porém, seria oportuno uma vez que muito ainda resta a
disciplinar , notadamente em matéria de ordenamento urbano, para o qual a lei
parcimoniosamente reservou apenas um artigo.
Na verdade, a tutela do patrimônio cultural tem sido considerada por
todos os Anteprojetos de reforma da Parte Especial do Código penal já
apresentados e paralisados à espera da vontade política de acolhe-los. O
Anteprojeto de 1984, de notáveis juristas, já previa diversas figuras num
Capítulo referente aos “Crimes contra a memória nacional”, que incluía a
falsificação de bens culturais e outras condutas assemelhadas, além de uma
especial tipificação de atentado contra a paisagem. No Anteprojeto
apresentado em 1999, sem que houvesse qualquer referência ao interesse
ambiental, introduzia-se um Título reservado à proteção do ordenamento urbano,
em que os crimes previstos eram os de incorporação indevida, fraude
imobiliária, infidelidade gerencial, parcelamento clandestino ou irregular do
solo urbano, fraude em parcelamento do solo urbano e licença ilegal.
A questão da ocupação do solo e do ordenamento urbanístico, todavia, não está
desvinculada da tutela ambiental baseada na qualidade de vida dos cidadãos, na
estética da paisagem e nas elementares medidas sanitárias que promovam o
desenvolvimento sustentado das cidades mas também a preservação de
interesses públicos vitais, como o do meio ambiente sadio e equilibrado.
Igualmente o comércio ilícito de bens culturais está a merecer maior atenção
dos legisladores e cultores do direito, pois as disposições existentes a
respeito são frágeis e lacunosas, mesmo no direito penal internacional, não
impedindo eficazmente nem a exportação nem a importação de bens roubados ou
adquiridos ilicitamente em verdadeiras pilhagens, nacionais ou internacionais.
Paralelamente às iniciativas de cunho legislativo, uma política de preservação do patrimônio histórico e arquitetônico, cultural e ambiental deveria ser intensificada no sentido de promover a recuperação das áreas urbanas degradadas, a restauração dos monumentos e fachadas, a adaptação de letreiros e anúncios objetivando a despoluição visual, o melhoramento dos logradouros públicos, a limpeza das pichações nos edifícios públicos e nas vias públicas, tudo visando a proporcionar a qualidade ambiental que desejamos para nós e para as futuras gerações, dando cumprimento às determinações constitucionais e às recomendações internacionais, preservando a natureza que nos cerca mas também velando pela conservação dos bens culturais, que constituem a nossa memória e a nossa identidade no espaço que ocupamos no mundo.
Dra. Ivette Senise Ferreira
Professora Titular de Direito Penal da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Membro da IUCN – Inrternational Union for the Conservation of Nature.
