A transmissão das sessões do STF deve acabar?
03/05/2018
Sim
Em 2005 esteve em visita ao Supremo Tribunal Federal um membro do Conselho Constitucional francês. Nelson Jobim, então presidente do STF, sabendo da minha proximidade à França – professor que fui por lá –, incumbiu-me de recebê-lo. Conversamos muito e ele ficou espantado quando soube da quantidade de processos nos gabinetes dos nossos ministros. Disse-me então que seu tribunal julgava a cada ano não mais do que oitenta e poucos processos!
Alguns meses depois, nas férias, voltei a Paris, ele recebeu-me em seu tribunal e fomos almoçar. Tomamos a Avenue de l’Opera e, após caminharmos por umas três quadras, ele parou e perguntou se eu percebera que ninguém o conhecia!
Na França, como quase em todo o resto do mundo, os juízes cumprem seu ofício discretamente. Não são atores da televisão. Cá entre nós, as sessões do Supremo Tribunal Federal transformaram-se em espetáculo televisivo.
Uma cena é realmente inesquecível: um ministro falava sem parar, por quase uma hora, o presidente da sessão – o Jobim, outra vez agora citado neste meu texto – o interrompeu e o sujeito explicou que não estava falando para os membros do tribunal. Falava para a televisão! Como se estivesse a participar de um espetáculo teatral.
Permitam-me lembrar que os textos da Constituição Federal e das leis são uma coisa e as normas deles extraídas outra. Isso porque a norma é expressão do texto normativo no quadro da realidade, exatamente no momento em que a Constituição e as leis estiverem sendo aplicadas.
Eis um exemplo bem expressivo: nosso Código Penal, de 1940, tipifica como crime o atentado público ao pudor; daí que uma mulher que em 1943 fosse à praia ou à piscina de maiô de duas peças, cavado, seria perseguida pela polícia; bem ao contrário, uma mulher que hoje lá vá detopless – não a mesma mulher! – não será importunada. As normas jurídicas são a expressão dos textos normativos dos quais extraídas no quadro da realidade, aqui e agora.
Bem a propósito, lembro o que afirmou o general Charles de Gaulle em seu discours et messages: a Constituição é um envelope. O que está contido dentro dela surge no e do dinamismo da vida político-social. Quem aplica os textos normativos há de ser capaz de apreender esse dinamismo. E de modo tal que, ainda que não tenha consciência disso, o movimento da realidade o conduzirá a essa apreensão.
Os textos da Constituição e das leis apenas adquirem força normativa na medida em que as normas jurídicas estejam sendo cotidianamente reconstruídas pelos juízes e tribunais.
Isso, porém, não os autoriza a valerem-se de princípios para se afirmarem. Ao ponto, por exemplo, de votos serem proferidos a partir de um tal de princípio da busca de felicidade! Se a coisa é assim, por que não o princípio da alegria? Ao ponto de a transmissão das sessões do STF pela TV Justiça findar por transformar a prudência – jurisprudência – em arte.
Tenho sustentado, reiteradamente, que a interpretação é uma prudência -– o saber prático, a phrónesis a que refere Aristóteles na Ética a Nicômaco. O homem prudente, diz ele, é aquele capaz de deliberar corretamente sobre o que é bom e conveniente para si próprio, mas não sob um aspecto particular, porém de um modo geral, considerando aquelas coisas que conduzem à vida boa em geral. A prudência não é uma ciência nem uma arte. O objeto da ciência é demonstrável. A arte visa à produção de algo cujo princípio de existência está no artista, não na coisa produzida. A prudência é uma virtude que não discerne o exato, porém o correto.
Os juízes haveriam de ser praticantes da jurisprudência, não da arte televisiva. Ocorre que hoje em dia, posando de artistas, expõem suas individualidades na televisão. Glosando uma canção de Roberto Carlos: “juízes sem preconceito/ sem saberem o que é o Direito/ fazem suas próprias leis!”
Não resta a menor dúvida: a transmissão das sessões do STF pela TV Justiça tem de acabar.
Eros Roberto Grau – Advogado e ministro aposentado do STF
Não
É sabido que desde a criação da TV Justiça as transmissões ao vivo têm dividido a opinião dos operadores do Direito, notadamente dos ministros e dos advogados. Já a sociedade, grande interessada no desfecho das decisões ali exaradas, tem-se mostrado amplamente favorável à transmissão ao vivo dos julgados da Corte Máxima do país.
É evidente que existem prós e contras. O custo seria um dos elementos a se considerar. A teatralidade das condutas dos envolvidos, querendo mídia e palco, também. Entretanto, o que pesam esses fatos diante do direito personalíssimo da informação da sociedade, notadamente na era atual? Inicialmente, é válido ressaltar que a TV Justiça é um canal público e não lucrativo, administrado pelo STF, criada por intermédio da Lei nº 10.461/2002, e que tem por objetivo aumentar a publicidade dos atos do Poder Judiciário e dos serviços essenciais à Justiça, aproximando a sociedade e o Direito.
Se por um lado, constitui uma prática inovadora e pioneira, posto não se tem notícia de sua larga utilização em outros países da comunidade internacional; por outro, intensifica debates ásperos, intensos e midiáticos, sobretudo nos casos que possuem grande visibilidade. Nesse sentido, entendo que não: a transmissão das sessões do STF pela TV Justiça não deve acabar. Observa-se na realidade nacional uma migração da resolução de questões relevantes de cunho moral, social e político para as mãos do Poder Judiciário, o que levou a uma maior imperatividade de transparência, publicidade e acesso aos julgados pela sociedade em geral.
Entretanto, no Legislativo tramita um Projeto de Lei (PL nº 7.004/13), de autoria do deputado federal Vicente Candido, do PT-SP, que visa proibir a transmissão ao vivo da emissora pública. O parecer contra o PL foi aprovado por unanimidade, uma vez que a sua aprovação poderia levar ao estabelecimento de uma espécie de censura prévia autorizada pela Justiça, representando, por si, uma perda significativa para o interesse público e um retrocesso do processo de consolidação da democracia no país.
A Constituição estabelece, em seu art. 93, IX, que: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade...”. Nesse sentido, o pleno acesso aos julgamentos confere maior aproximação da sociedade com o mundo jurídico; garante o direito à informação, desde que com o uso de linguagem simplificada, propiciando a afirmação da cidadania.
Há, com a transmissão dos julgados em tempo real, o afastamento dos intermediários entre os juízes e os destinatários das decisões – desenvolvendo o direito ao pensamento individual, consagrando o direito à informação, e à autonomia pessoal na tomada de decisões.
A publicidade dos julgados, mesmo em face dos pontos negativos que congrega, levou a um incremento da legitimação das decisões do STF, tendo em vista o fomento do diálogo entre a operacionalidade da lei e a sociedade. Há, por outro lado, alguns impactos negativos decorrentes das transmissões televisivas dos julgados: o de transformar juízes em celebridades, criando um falso mito, ou mesmo podendo levar a uma perda de imparcialidade.
O encurtamento da distância entre as instituições jurídicas e a vontade do povo, de tomar parte delas, representa elemento essencial à solidificação do Estado de Direito, posto que aumenta a confiança na administração da Justiça e na forma democrática de operar o Direito. Não se descartando cautelas necessárias para que se cumpra o devido processo legal, deve a sociedade ter acesso às decisões emanadas da Corte.
As vantagens da transmissão das sessões do STF pela TV Justiça são maiores que as suas desvantagens, pois possibilita conhecimento e informação, e abre espaço para reflexões, debates e manifestações populares, suplantando os efeitos complexos da mídia ou a dificuldade de compreensão que emana dos votos extremamente longos permeados de complexidade e regados ao uso corrente de vocabulário altamente complexo ou o sensacionalismo, visando a consolidação do processo democrático no país.
Carlos Alberto Dabus Maluf – Advogado, professor titular de Direito Civil da USP