Notas e Ofícios

02 de julho de 2025 - quarta

Nota Técnica – Críticas à Lei Estadual nº 18.157/2025

Cadastro de pessoas condenadas por crime de estupro

As Comissões Especiais de Advocacia Criminal; de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial; e de Política Criminal e Penitenciária, todas da OAB SP (Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo), no exercício de suas atribuições institucionais, manifestam-se sobre a Lei Estadual nº 18.157/2025, que institui o Cadastro Estadual de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro, apontando sua inconstitucionalidade formal e material, sua desconformidade com o regime jurídico nacional e internacional de proteção de dados e sua comprovada ineficácia como política pública de segurança.

I. Inconstitucionalidade formal e material

1. Invasão de competência legislativa
A lei estadual legisla sobre matéria penal, criando efeitos jurídicos permanentes vinculados à condenação criminal. Nos termos do art. 22, I, da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre direito penal e processual penal. Ao criar registros criminais com efeitos restritivos e punitivos, a norma estadual ultrapassa sua competência, incorrendo em vício formal insanável.

2. Violação à vedação de penas perpétuas
A manutenção de cadastro de dados pessoais e sensíveis de condenados, inclusive após o cumprimento da pena, configura sanção de caráter perpétuo, em afronta ao art. 5º, XLVII, “b”, da Constituição Federal. O estigma vitalício imposto pela norma contraria a natureza finita da pena e perpetua a exclusão social.

3. Ofensa à dignidade da pessoa humana e à finalidade ressocializadora da pena
A perpetuação dos efeitos da condenação criminal compromete o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e esvazia a finalidade ressocializadora da execução penal, transformando o indivíduo em “eterno condenado”, em desacordo com os fundamentos do Estado Democrático de Direito.

4. Contrariedade à Lei de Execução Penal (LEP)
O art. 1º da Lei 7.210/1984 (LEP) estabelece que um dos objetivos da execução penal é proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado. A prisionalização em si já é um estigma e ao mesmo tempo um obstáculo para reinserção social. O aludido “cadastro”, para além de sua ineficiência como uma política criminal voltada a diminuir a reincidência criminal, contraria o objetivo central da execução penal ao recrudescer o estigma prisional dificultando-se, com isso, a reintegração social do condenado.

Ademais, o art. 202 da mesma lei determina que, cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida ou certidões quaisquer referências à condenação, salvo exceções legais. A manutenção de dados de ex-condenados fora dessas hipóteses afronta diretamente a legislação federal vigente.

II. Violação à proteção de dados pessoais e direitos fundamentais

1. Tratamento ilícito e desproporcional de dados sensíveis
A lei prevê a coleta e manutenção compulsória de dados sensíveis, como material genético (DNA), biometria e imagens, sem delimitação temporal, finalidade legítima clara, base legal adequada ou previsão de medidas de segurança, transparência e controle.
Tal prática viola os princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e da Emenda Constitucional nº 115/2022, que consagrou a proteção de dados como direito fundamental.

2. Ausência de controle judicial, transparência e governança
A responsabilidade pelo banco de dados recai exclusivamente sobre a Secretaria de Segurança Pública, sem previsão de controle judicial, auditoria independente ou mecanismos efetivos de correção.

A experiência nacional evidencia a vulnerabilidade de bancos de dados públicos: o vazamento massivo de dados pessoais de mais de 223 milhões de brasileiros em 2021 ilustra o risco concreto de exposição indevida, especialmente quando se trata de banco de dados sensíveis como DNA e biometria.

3. Violação ao direito à autodeterminação informacional
A manutenção perene de dados de pessoas que já cumpriram suas penas nega o direito à autodeterminação informacional, afrontando os princípios de finalidade, necessidade, adequação e limitação temporal, essenciais ao regime constitucional de proteção de dados.

III. Ineficácia e riscos da medida como política de segurança pública

1. Falta de evidências de redução de reincidência
Estudos acadêmicos e avaliações empíricas, especialmente nos Estados Unidos, onde registros públicos de agressores sexuais existem desde os anos 1990, demonstram que tais cadastros não reduzem significativamente a reincidência criminal e não contribuem para a prevenção de novos crimes.

Ao contrário, o estigma público, a marginalização e o desemprego decorrentes da exposição aumentam fatores de risco para reincidência e dificultam a reintegração social.

2. Substituição de políticas públicas eficazes
A destinação de recursos para medidas de punição simbólica e exposição pública desvia esforços de políticas públicas baseadas em evidências, como:

• Programas de educação sexual e prevenção primária;
• Apoio e acolhimento a vítimas de violência sexual;
• Acompanhamento psicológico e social de condenados após o cumprimento da pena;
• Monitoramento eletrônico proporcional e controlado.

IV. Desalinhamento com parâmetros internacionais

1. Contrariedade a tratados e boas práticas internacionais
A lei estadual afronta a Convenção 108 do Conselho da Europa, que estabelece princípios rigorosos para o tratamento automatizado de dados pessoais, e ignora as diretrizes da ONU sobre tratamento penal humanizado e direitos de ex-condenados.

2. Experiência internacional comparada
Países como Alemanha, França, Portugal, Canadá, Austrália e Nova Zelândia rejeitam cadastros públicos perpétuos, priorizando:
• Cadastros restritos ao uso de autoridades policiais e judiciais;
• Foco em reabilitação social e reinserção;
• Proteção estrita de dados sensíveis, com limitação temporal e controle judicial.

V. Recomendações
Diante do exposto, as Comissões Especiais de Advocacia Criminal; de Privacidade, Proteção de Dados e IA; e de Política Criminal e Penitenciária, todas da OAB SP, concluem que a Lei nº 18.157/2025 é:

• Formalmente inconstitucional, por invadir competência legislativa da União;
• Materialmente inconstitucional, por violar a vedação de penas perpétuas, a dignidade humana e a finalidade ressocializadora da pena;
• Incompatível com o regime constitucional e infraconstitucional de proteção de dados pessoais;
• Ineficaz e contraproducente como política de segurança, reproduzindo modelos internacionais já considerados falhos;
• Geradora de riscos concretos à ordem jurídica, à coesão social e aos direitos fundamentais.

Recomenda-se:
• Revogação integral da Lei nº 18.157/2025;
• Adoção de políticas públicas estruturadas, baseadas em evidências empíricas, voltadas à prevenção, ressocialização e acompanhamento pós-pena;
• Que qualquer iniciativa de tratamento de dados sensíveis seja submetida a controles rigorosos, temporários, auditáveis e sob supervisão judicial.

São Paulo, julho de 2025

Comissão Especial de Advocacia Criminal; 
Comissão Especial de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial; 
Comissão Especial de Política Criminal e Penitenciária

Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo


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