Direito Notarial e Registros Públicos

12 de agosto de 2025 - terça

Comissão de Direito Notarial e de Registros Públicos emite parecer técnico contra PL nº 1064/2025

Proposta altera o Código de Processo Civil para permitir que herdeiros realizem inventário e partilha de bens extrajudicialmente sem a obrigatoriedade de assistência jurídica


MANIFESTAÇÃO PÚBLICA

 PROJETO DE LEI N.º1064 DE 2025


I — RESUMO DA PROPOSIÇÃO
Trata-se do PL 1064/2025, de autoria do Deputado Federal Aluisio Mendes (REPUBLIC/MA) que propõe, nos termos de sua ementa: “Altera a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para tornar desnecessária, em caso de realização de inventário e partilha de bens deixados por pessoa falecida por via extrajudicial, a assistência das partes interessadas por advogado ou defensor público.”.
Atualmente, o projeto encontra-se em fase inicial de tramitação frente à Câmara dos Deputados, aguardando despacho do Presidente da Casa.

- CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE DE EXPEDIÇÃO DA MANIFESTAÇÃO 
A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo OAB/SP, por meio da Comissão de Direito Notarial e de Registros Públicos da OAB/SP,  no exercício de sua competência, vem manifestar-se contrariamente ao PL 1064/2025, por entender que a proposta afronta, diretamente, direitos e princípios constitucionais, conforme os argumentos a seguir, que demonstram que a redação atual pode colocar em risco a segurança jurídica dos atos de inventário e partilhas extrajudiciais.  

- ANÁLISE DA PROPOSTA
O Projeto de Lei nº 1064/2025, ao propor a dispensa da assistência de advogado ou defensor público nos casos de inventário e partilha de bens realizados de forma extrajudicial, suscita considerações de grande relevância acerca da necessidade e da importância da presença desses profissionais em tais procedimentos. A proposta de alteração legislativa, ao excluir a obrigatoriedade da intervenção do advogado ou defensor público, ainda que tenha como escopo a simplificação e agilização dos processos de inventário, pode comprometer significativamente a efetividade da justiça, além de colocar em risco a devida proteção dos direitos das partes envolvidas. 


É essencial destacar que, embora os notários detenham a competência para a lavratura do ato notarial, a atuação dos advogados e defensores públicos mostra-se indispensável para garantir não somente a segurança jurídica do procedimento, mas também sua regularidade e a proteção dos direitos das partes. A ausência desses profissionais em momentos tão cruciais pode acarretar em lacunas legais, que, em vez de promover a celeridade processual, podem gerar consequências indesejadas e prejudiciais à integridade do sistema jurídico e ao direito dos cidadãos.


O artigo 133 da Constituição Federal de 1988, ao estabelecer que "o advogado é indispensável à administração da justiça", consagra um princípio jurídico de elevada relevância, que não apenas fundamenta o exercício da advocacia nos processos judiciais, mas também reflete compreensão abrangente sobre o papel do advogado em todo o sistema jurídico, inclusive na esfera extrajudicial. Esse dispositivo constitucional não restringe a atuação do advogado ao âmbito judicial, reconhecendo sua função essencial igualmente em atos extrajudiciais de significativa relevância, como o inventário e a partilha de bens, que envolvem questões patrimoniais sensíveis para as partes. A presença do advogado nesses procedimentos não constitui mera formalidade, mas elemento indispensável para garantir o respeito integral aos direitos das partes em todas as etapas processuais, assegurando a conformidade dos atos com a legislação vigente e a não violação de direitos.


Destarte, o papel do advogado transcende a simples representação legal: constitui-se, por essência, em garantidor dos direitos fundamentais, incumbido de assegurar a plena proteção dos interesses das partes mediante atuação pautada pela legalidade, justiça e equidade. Na prática forense, o advogado assume função que ultrapassa a de mero intermediário jurídico, tornando-se elemento vital para a segurança jurídica, atuando como fiscal da regularidade processual e protetor dos direitos das partes. Em procedimentos extrajudiciais, sua presença garante a condução transparente dos atos em estrita observância aos preceitos legais, prevenindo irregularidades que possam macular a validade e eficácia dos atos praticados. Dessa forma, a atuação dos profissionais em processos extrajudiciais relevantes - como inventários e partilhas - configura-se como instrumento de prevenção de conflitos e a preservação da ordem jurídica. 


É relevante ressaltar que embora o tabelião detenha a competência técnica e formal para lavrar escrituras públicas e inventário, cumpre salientar que a atuação do advogado diferencia-se substancialmente da função notarial.  O advogado, enquanto profissional do direito, exerce uma função multifacetada e de extrema relevância, que vai muito além. Sua atuação abrange uma esfera preventiva, orientadora e protetiva dos direitos das partes envolvidas. Ao advogado incumbe realizar uma análise minuciosa da legalidade ajustes celebrados entre as partes, verificando a conformidade com o ordenamento jurídico vigente, a inexistência de vícios de consentimento, a regularidade formal e material dos termos e a prevenção de prejuízos futuros aos envolvidos. 


Ademais, o advogado possui a competência específica para orientar as partes sobre as possíveis consequências jurídicas de determinadas decisões, inclusive sua repercussão na esfera tributária. Essa atribuição consubstancia-se em exame detalhado das consequências fiscais, apuração de obrigações tributárias decorrentes da partilha, esclarecimentos sobre o ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações) e, orientação quanto aos demais encargos fiscais incidentes. 

Outra função primordial desempenhada é o processo de intermediar e resolver potenciais conflitos que possam surgir entre os herdeiros ou entre outros interessados no inventário, evitando que questões emocionais ou discordâncias pessoais interfiram na regularidade e no bom andamento do processo. Em muitos casos, a atuação do advogado pode prevenir litígios futuros, sendo um fator decisivo para garantir que o procedimento de inventário transcorra de maneira eficiente, segura e sem contendas. Sua presença assegura que todo o processo seja conduzido de forma equânime, respeitando os direitos de todas as partes e preservando a ordem jurídica, evitando surpresas ou desentendimentos que possam comprometer a validade do ato ou gerar prejuízos para os envolvidos. 


A Lei nº 8.906/1994, que institui o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), estabelece como atribuições privativas do advogadao a representaçaõ, orientação e defesa de clientes em questões jurídicas, incluindo aquelas que envolvem o direito de família e sucessões, intrinsecamente relacionadas aos processos de inventário e partilha de bens. Embora reconheça-se a importância do tabelião na formalização de documentos, a orientação jurídica prestada por advogados e defensores públicos possui uma natureza única e essencial, que não pode ser substituída por outros profissionais, independentemente de sua capacitação técnica em áreas específicas. A presença do advogado é imprescindível para garantir a regularidade de todo o processo de inventário, assegurando que todos os atos praticados estejam em conformidade com a legislação aplicável e que os direitos das partes sejam devidamente protegidos. Assim, o advogado atua como um garantidor da legalidade e da justiça no curso do processo, evitando conflitos, vícios ou irregularidades que possam ocorrer.


A função do advogado, neste contexto, transcende a formalização de documentos, abrangendo, como já ressaltado, a análise minuciosa de todos os aspectos jurídicos, a identificação e mitigação de riscos legais e a prevenção de erros que possam invalidar atos. O profissional torna-se essencial para assegurar que o processo transcorra de maneira justa e que todos os direitos das partes sejam resguardados, em conformidade com os princípios do direito civil e familiar. Assim, sua atuação se configura como um pilar fundamental da administração da justiça, garantindo não apenas a legalidade dos atos, mas também a equidade, a segurança jurídica e a proteção dos direitos fundamentais dos envolvidos. 

A previsão de dispensa da atuação de advogados ou defensores públicos em inventários extrajudiciais pelo PL em análise configura grave risco aos direitos dos envolvidos. Sem assessoria jurídica qualificada, as partes poderão tomar decisões sem plena compreensão de suas consequências legais, enfrentar ônus jurídicos imprevistos e expor-se a litígios futuros evitáveis. Essa preocupação acentua-se diante da natureza complexa dos inventários, uma vez observado que os processos envolvem bens de difícil avaliação, bens imóveis ou de alto valor, ou ainda a participação de herdeiros incapazes, menores ou pessoas em condições jurídicas especiais. 

A ausência de assessoria jurídica qualificada pode resultar na omissão ou má interpretação de questões tributárias relevantes, como o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), além da falta de orientação adequada sobre a partilha de bens a fim de se evitar conflitos. Cabe destacar que o advogado e o defensor público exercem função que ultrapassa a mera técnica processual, assumindo papel fundamental na orientação jurídica e na proteção dos direitos das partes. Com isso, a dispensa de sua atuação, conforme previsto no projeto de lei, pode comprometer gravemente a segurança jurídica do processo, criando condições favoráveis ao surgimento de disputas, erros materiais e até mesmo à violação de direitos patrimoniais e pessoais dos envolvidos. Tal cenário configura evidente retrocesso no acesso à justiça e na efetiva garantia dos direitos fundamentais.

É fundamental destacar que, embora os tabeliães detenham qualificação técnica para a lavratura de atos notariais, sua atuação encontra limites legais bem definidos. A responsabilidade do tabelião restringe-se estritamente à formalização dos procedimentos, não competindo a ele fornecer orientações jurídicas nem analisar as implicações legais das decisões tomadas pelas partes. Conforme estabelecido na Lei nº 8.935/94, sua função limita-se à prática dos atos nela previstos, sendo expressamente vedado ultrapassar esses parâmetros legais. Ademais, conforme dispõe de forma clara e inequívoca o artigo 1º, II da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB), as atividades de "consultoria, assessoria e direção jurídicas" constituem atribuição privativa dos advogados.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, XXXV, estabelece de maneira inequívoca o direito fundamental de acesso à justiça. Esse direito não se restringe à mera possibilidade de acionar o Poder Judiciário para resolver litígios, mas compreende também o direito à orientação jurídica adequada e à assistência profissional em todas as questões legais relevantes que possam impactar a vida do cidadão. Tal garantia constitucional assegura a todos a representação técnica e a proteção legal necessárias sempre que sua situação jurídica exigir assessoramento especializado. Nesta perspectiva, o efetivo acesso à justiça pressupõe o acompanhamento por profissionais qualificados - advogados ou defensores públicos - que não só garantem a defesa técnica dos interesses individuais, mas também proporcionam o esclarecimento necessário para que o cidadão compreenda cabalmente as consequências jurídicas de seus atos e decisões.

A proposta de eliminar a obrigatoriedade da assistência de advogado ou defensor público em processos de inventário e partilha de bens representa grave ameaça ao pleno acesso à justiça. Tal medida, ao privar os envolvidos - frequentemente em situação de vulnerabilidade emocional e, muita das vezes, financeira - do indispensável suporte técnico-jurídico, compromete a capacidade de tomada de decisões conscientes e fundamentadas. Na prática, essa fragilização da proteção legal pode acarretar: violação de direitos constitucionais, equívocos processuais irreparáveis e acentuação de desigualdades sociais. Mais que uma suposta simplificação procedimental, o projeto cria condições para a insegurança jurídica, configurando um preocupante retrocesso na efetividade do direito de acesso à justiça, com consequências potencialmente danosas para todos os envolvidos nesses atos de última vontade. Neste sentido, argumenta Adriano Ferriani:


Apesar da qualidade do articulista, sua ideia desconsidera essas e muitas outras peculiaridades que reclamam a presença constante do advogado. A implementação daquilo que é proposto seria o mesmo que pregar a desnecessidade do engenheiro para construir uma ponte ou um prédio. Afinal, um software também poderia dar as respostas sobre a quantidade de ferro e de concreto necessários para uma obra previamente dimensionada pelo interessado.

Diante disso, conclui-se que a atuação de advogados e defensores públicos é elemento indispensável para a condução adequada dos inventários extrajudiciais, garantindo que sejam realizados com justiça, legalidade, equidade e em perfeita conformidade com os princípios constitucionais e as normas jurídicas pertinentes. A função para além do quanto já ressaltado, abrange a crucial responsabilidade de conscientizar as partes sobre as implicações jurídicas de suas decisões e as possíveis consequências legais de seus atos. Incumbe aos advogados e defensores públicos o dever de orientar tecnicamente os envolvidos sobre seus direitos e obrigações, prevenindo assim quaisquer desvios dos objetivos de justiça e equidade que devem nortear o processo. Sua atuação qualificada é, em última análise, a garantia de que os acordos e decisões tomados no âmbito do inventário e da partilha sejam não apenas válidos em sua forma, mas também materialmente justos e legítimos, respeitando sempre o ordenamento jurídico e a autonomia da vontade das partes.


A dispensabilidade da assistência do advogado ou defensor público, conforme proposto pelo Projeto de Lei nº 1064/2025, representa um risco significativo para a segurança jurídica dos envolvidos, ao criar um vácuo de proteção legal e um possível campo fértil para abusos ou erros jurídicos. Ao eliminar a obrigatoriedade da presença de advogados ou defensores públicos, o projeto não apenas compromete a eficácia das decisões tomadas, como também viola o princípio constitucional da indispensabilidade da advocacia (art. 133 da CF/88), fundamento essencial do nosso ordenamento jurídico. Este princípio constitucional estabelece que a função do advogado não é acessória, mas sim elemento fundamental para a correta administração da justiça, sendo imprescindível tanto para a tutela dos direitos individuais quanto para a manutenção da própria ordem jurídica. O enfraquecimento desta garantia, conforme proposto pelo PL 1064/2025, prejudicaria sensivelmente a efetividade da justiça, uma vez que limitaria a compreensão plena dos direitos pelas partes envolvidas, fragilizaria a confiança na integridade do processo, comprometeria os princípios da equidade e legalidade e criaria obstáculos à adequada solução dos conflitos. A consequência direta seria um preocupante retrocesso não apenas na proteção dos direitos individuais, mas na própria estrutura do sistema de justiça como um todo, com reflexos negativos para toda a sociedade.

CONCLUSÃO
Diante de todos os argumentos expostos, manifestamos nossa firme oposição ao Projeto de Lei nº 1064/2025, por configurar clara afronta a direitos fundamentais e princípios constitucionais, além de representar grave retrocesso na segurança jurídica dos procedimentos de inventário e partilha extrajudiciais. A presença do advogado revela-se imprescindível não apenas como garantia de regularidade formal, mas como elemento essencial. A atuação técnica qualificada do advogado constitui, portanto, pilar fundamental para a correta aplicação do direito, garantindo que todas as etapas do processo sejam conduzidas com estrita observância da legalidade e da proteção dos direitos fundamentais envolvidos.


Colocamo-nos à disposição para contribuir com o debate qualificado sobre esta matéria tão relevante, certos de que a reflexão criteriosa sobre os impactos negativos desta proposta ao nosso ordenamento jurídico conduzirá à sua necessária rejeição.
Cordialmente,


Rachel Letícia Curcio Ximenes
Presidente da Comissão de Direito Notarial e de Registros Públicos da OAB/SP
 


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