
por Alessandro A. Ortiz
Resumo
A presente abordagem analisa o inciso XXV do artigo 34 da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB), que dispõe sobre a infração disciplinar de “manter conduta incompatível com a advocacia”. Por tratar-se de tipo infracional aberto de conteúdo indeterminado, a sua interpretação vem sendo construída pela jurisprudência do Conselho Federal da OAB. A partir de revisão doutrinária e análise de precedentes, busca-se compreender os critérios utilizados para delimitar a aplicação da norma, destacando os impactos da cláusula geral na segurança jurídica e na proteção da dignidade da advocacia.
Palavras-chave: Advocacia. Estatuto da OAB. Infração disciplinar. Conduta incompatível. Jurisprudência.
1. Introdução
O exercício da advocacia pressupõe observância a um conjunto de regras éticas e disciplinares que visam assegurar a dignidade da profissão e a confiança da sociedade nos serviços prestados.
Dentre o conjunto de regras, o presente artigo tem por objeto analisar o inciso XXV do artigo 34 da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB), que tipifica a prática de conduta incompatível com o exercício da advocacia, sujeitando o advogado às sanções previstas no artigo 37.
O tipo infracional em questão, trata-se de cláusula aberta, de conteúdo indeterminado, cuja interpretação vem sendo construída, sobretudo, pela jurisprudência dos Tribunais de Ética e Disciplina das Seccionais da OAB, bem como pelo Conselho Federal da OAB.
Assim como no âmbito penal, o princípio da legalidade também ocupa papel central na seara do processo disciplinar, exigindo que as infrações e as respectivas sanções estejam previamente previstas em lei ou em normas válidas, assegurando previsibilidade e segurança jurídica.
Entretanto, em determinados pontos, o sistema normativo adotou a técnica legislativa das cláusulas abertas, isto é, disposições de conteúdo indeterminado, que não descrevem de forma exaustiva a conduta proibida, mas remetem à interpretação do julgador para a concretização do conceito normativo.
A vantagem das cláusulas abertas está justamente na sua elasticidade interpretativa, permitindo ao órgão julgador adaptar a aplicação do direito às mutações sociais, às novas práticas do mercado jurídico e às exigências éticas que se renovam ao longo do tempo. Dessa forma, evita-se que lacunas normativas impeçam a responsabilização de comportamentos manifestamente lesivos ao prestígio da advocacia.
Por outro lado, a utilização de tipos disciplinares abertos levanta discussões quanto à segurança jurídica e ao princípio da tipicidade, especialmente porque o advogado precisa ter clareza prévia sobre quais condutas são vedadas. A ausência de descrição taxativa exige que a aplicação da norma se faça com especial prudência, mediante fundamentação sólida e com observância estrita dos princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.
2. O Conceito de “Conduta Incompatível com a Advocacia”
O Estatuto, em seu art. 35, prevê que a infração disciplinar pode levar a penalidades que variam da censura à exclusão. Contudo, o inciso XXV, nos termos do artigo 37, inciso I do Estatuto, estabelece a sanção de suspensão.
Referido dispositivo apresenta uma tipificação genérica, abrindo espaço para que a análise da incompatibilidade seja realizada caso a caso, conforme os valores da classe e os princípios éticos da profissão.
Da análise da jurisprudência do Conselho Federal da OAB, a noção de “conduta incompatível” relaciona-se diretamente ao decoro, à moralidade e à dignidade da advocacia, englobando comportamentos que, mesmo fora do exercício estrito da atividade profissional, maculam a imagem da classe.
3. Conceito de Tipo Penal Aberto de Conteúdo Indeterminado no Direito Penal
No Direito Penal brasileiro, exige-se que a lei descreva com clareza e precisão as condutas proibidas, permitindo ao cidadão conhecer antecipadamente os limites de sua liberdade.
De acordo com Hungria, o tipo penal é a descrição legal da conduta proibida. Quando o legislador não fornece contornos objetivos suficientes, fala-se em tipo penal aberto, que demanda complementação pelo intérprete.1
Fernando Capez observa que o tipo aberto “é aquele que se vale de termos vagos ou indeterminados, exigindo do aplicador do direito um juízo de valor para sua delimitação”.2
Nesse contexto, a expressão “conteúdo indeterminado” indica a ausência de critérios precisos na própria lei.
Rogério Greco acrescenta que tais tipos “transferem ao julgador a tarefa de definir os limites da criminalização, o que pode gerar insegurança e arbitrariedades”. 3
A doutrina penalista se divide quanto à constitucionalidade dos tipos abertos.
Para Júlio Fabbrini Mirabete, “a vagueza típica compromete a exigência de taxatividade, tornando o cidadão refém de interpretações subjetivas”.4
Basileu Garcia argumenta que a abertura excessiva viola o princípio da legalidade, pois não permite ao indivíduo prever com segurança as consequências de seus atos.5
Defendendo a constitucionalidade do tipo aberto, Cezar Roberto Bitencourt defende que, em certas situações, a abertura é inevitável, especialmente quando a lei penal precisa acompanhar mutações sociais, como no conceito de “ato obsceno”.6
Luiz Regis Prado acrescenta que a utilização de cláusulas gerais no Direito Penal deve ser excepcional, mas não é, em si mesma, inconstitucional.7
4. A Jurisprudência do Conselho Federal da OAB
A jurisprudência do Conselho Federal tem buscado mitigar os problemas de indeterminação por meio da concretização interpretativa.
A conduta de ajuizar uma ação previdenciária sem o conhecimento ou consentimento do suposto cliente, sem apresentar a documentação mínima exigida, incluindo a ausência de procuração, mesmo após intimação judicial para regularizar a petição inicial, e sem qualquer comprovação de que houve efetiva contratação, caracteriza uma conduta incompatível com a advocacia.8
Também configura conduta incompatível com a advocacia, a conduta da advogada que, contratada para ajuizar ação trabalhista, não o faz, ludibria a cliente e utiliza indevidamente o cartão de crédito da genitora da cliente, vindo causar prejuízo aos interesses que lhe foram confiados.9
A conduta do advogado que recebe valores de clientes para renegociação de dívidas e recolhimento de ITCMD, vindo a se apropriar indevidamente de parte dos valores recebidos, sem ajuizar a demanda de inventário, também pratica a infração prevista do inciso XXV do artigo 34 do Estatuto da OAB.10
Outra conduta que configura manter conduta incompatível com a advocacia é a de forjar a emissão de cheques com intuito de tentar comprovar o pagamento do preço de imóvel em aquisição judicial, sem que se tenha demonstrado erro de julgamento ou condenação baseada em falsa prova. O entendimento do Conselho Federal é no sentido de que um ato isolado, desde que grave e prejudicial à dignidade da advocacia, poderá configurar a infração disciplinar de manter conduta incompatível com a advocacia, dispensando sua habitualidade.11
Advogada que facilita o exercício da advocacia por advogado já excluído dos quadros da OAB e adultera procurações para o ajuizamento de demandas sem o consentimento dos supostos clientes, comete a infração de manter conduta incompatível com a advocacia.12
Advogado cuja conduta, amplamente divulgada pela imprensa e objeto de investigação no âmbito da Operação Faroeste, revela-se incompatível com os preceitos éticos da advocacia.13
Por outro lado, o Conselho Federal já decidiu no sentido de que manifestações de advogada, em processo judicial, que se coadunam com o assunto discutido nos autos, não podem ser consideradas falta de urbanidade com o advogado representante. Manifestações, ainda que mais contundentes e mais ásperas, destinadas a narrar os acontecimentos na demanda judicial (animus narrandi). Ausência de provas de mínima intencionalidade em ofender a honra ou faltar com o dever de urbanidade em relação ao advogado recorrido.14
Esses precedentes demonstram que a incompatibilidade com a advocacia é analisada a partir do impacto do comportamento na imagem da advocacia e na quebra da confiança social.
Como se depreende da análise da jurisprudência, o tipo infracional aberto de conteúdo indeterminado constitui uma realidade no processo disciplinar da OAB. Embora necessário em determinadas hipóteses, a discricionariedade concedida ao intérprete, pode representar risco à segurança jurídica.
5. Critérios de Aplicação do Tipo Infracional Aberto de Conteúdo Indeterminado
Da análise da jurisprudência, verifica-se a adoção de alguns critérios objetivos para caracterização da conduta incompatível. São eles: a) Gravidade do ato: apenas comportamentos que afetam de maneira significativa a dignidade da advocacia justificam a subsunção ao inciso XXV; b) Repercussão social: quanto maior a repercussão negativa do ato na sociedade ou na classe, mais evidente se torna a incompatibilidade; c) Nexo com a advocacia: embora não exija relação direta com o exercício da profissão, avalia-se se a conduta compromete a confiança e o prestígio do advogado enquanto profissional.
Sobre a aplicação da lei, lembremos as lições de Nelson Hungria: “Não deve o juiz ser um aplicador automático do literalismo da lei, mas um revelador de todo o possível direito que nela se encerra, suprindo-lhe a inexplicitude decorrente da imperfeição da linguagem humana. É-lhe vedado, entretanto, negar a lei. Notadamente em matéria penal, não pode o juiz meter-se a filósofo reformista, a santo incipiente ou a sociólogo de gabinete, para pretender corrigir a lei segundo a sua cosmovisão, a sua mística ou o seu teorismo. Tem de aplicar o direito positivo, o direito expresso ou latente nas leis, e não o direito idealmente concebido através de especulações abstratas ou lucubrações metafísicas”.15
6. Conclusão
O inciso XXV do art. 34 da Lei nº 8.906/94 representa uma cláusula de salvaguarda ética da advocacia, permitindo a responsabilização disciplinar de condutas não previstas expressamente, mas que atentam contra os valores da profissão.
A jurisprudência do Conselho Federal da OAB tem dado concretude a esse dispositivo, destacando a necessidade de o advogado manter comportamento íntegro, urbano e digno, dentro e fora do exercício profissional, como forma de preservar a credibilidade e a respeitabilidade da advocacia perante a sociedade.
Assim, a solução, como tem indicado a jurisprudência, não está na não aplicação da referida norma, mas numa interpretação restritiva, assegurando respeito ao princípio da legalidade e da proporcionalidade.