Direito da Moda

29 de outubro de 2025 - quarta

Nota Técnica da Comissão de Direito da Moda da OAB SP sobre o PL 1.802/2024

Documento analisa proposta de doação de produtos apreendidos por falsificação para ações de assistência em desastres e calamidades públicas



Nota Técnica da Comissão de Direito da Moda da OAB-SP sobre o PL 1.802/2024 
Doação de produtos apreendidos por falsificação para assistência em desastres e calamidades públicas

Destinatário: Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal
Signatária: Comissão de Direito da Moda da OAB Seção São Paulo
Objetivo: Oferecer subsídios técnico-jurídicos para o aperfeiçoamento do PL 1.802/2024, aprovado na CCT, que altera a Lei de Propriedade Industrial para permitir a doação de produtos apreendidos por falsificação a vítimas de desastres/calamidades, inclusive com hipótese excepcional de doação sem descaracterização durante calamidade reconhecida pelo Poder Legislativo.

1) Sumário executivo
O Projeto de Lei (PL) 1.802/2024, de autoria do Senador Eduardo Gomes, teve sua aprovação na Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor (CCT), sob a relatoria do Senador Carlos Portinho, e foi remetido à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) em caráter terminativo. A proposição visa alterar a Lei de Propriedade Industrial (LPI) para viabilizar a doação de produtos apreendidos por falsificação a vítimas de desastres e calamidades públicas. A finalidade pública do projeto é louvável, buscando uma resposta humanitária ágil, a redução de custos de armazenamento e a mitigação dos impactos ambientais decorrentes da destruição desses bens. No entanto, o texto noticiado apresenta um ponto sensível: a hipótese de doação sem retirada de marca em situações de calamidade. Esta exceção requer análise e ajustes cuidadosos para evitar efeitos negativos sobre a Propriedade Industrial, a segurança do consumidor e o risco de desvio dos produtos.

2) Marco jurídico aplicável
A análise do PL 1.802/2024 deve ser pautada por um conjunto de normas e princípios que regem a matéria no ordenamento jurídico brasileiro:

2.1. Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996): Protege as marcas e demais sinais distintivos, reprimindo a contrafação e o uso indevido, e prevendo instrumentos civis e penais para a defesa desses direitos.

2.2. Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/1941): Estabelece os ritos para a apreensão, a custódia da prova, o perdimento de bens e a sua destinação, assegurando o devido processo legal.

2.3. Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990): Garante a segurança do produto e do serviço, o direito à informação adequada e clara, e estabelece a responsabilidade por danos causados por produtos com vício ou defeito.

2.4. Normas sanitárias e técnicas (ANVISA/INMETRO e certificações setoriais): Conjunto de regulamentos e padrões que visam garantir a saúde, a segurança e a qualidade de produtos comercializados no país, exigindo certificações e inspeções específicas.

2.5. Princípios Constitucionais: Dentre eles, destacam-se a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a proteção à saúde (art. 6º e 196), a proporcionalidade na restrição de direitos e a função social da propriedade (art. 5º, XXIII), que devem nortear qualquer política pública de destinação de bens.

3) Análise técnica do texto noticiado:
O PL 1.802/2024, conforme noticiado, estabelece uma regra geral e uma exceção para a destinação de produtos contrafeitos apreendidos:

● Regra geral: Fora de situações de calamidade, a doação dos produtos apreendidos dependerá da descaracterização dos sinais distintivos, ou seja, da remoção ou neutralização das marcas falsificadas.

● Exceção: Em casos de calamidade pública reconhecida pelo Poder Legislativo, será permitida a doação sem a descaracterização dos sinais distintivos.

● Destinação de itens inseguros: Produtos que não possam ser doados com segurança deverão ser desmontados ou triturados, com os materiais aproveitáveis sendo destinados à reciclagem.

Benefícios Potenciais:
1. Agilidade Humanitária: Possibilita uma resposta mais rápida e eficiente às necessidades emergenciais de populações afetadas por desastres.

2. Redução de Custos Públicos: Diminui os gastos com armazenamento, vigilância e, futuramente, com a destruição dos produtos apreendidos.

3. Menor Impacto Ambiental: Prioriza a doação ou a reciclagem em detrimento da destruição pura e simples, contribuindo para a sustentabilidade.

Riscos Identificados:
1. Confusão e Diluição de Marca: A doação de produtos com marcas falsificadas intactas, mesmo que sem fins comerciais imediatos, pode gerar confusão no consumidor, que pode associar o produto pirata ao titular da marca original, ou diluir o valor da marca ao vê-la associada a produtos de baixa qualidade, e até mesmo produtos ilícitos.

2. Reintrodução no Mercado Paralelo (Desvio/Revenda): Sem controles rigorosos, a doação de produtos com marca intacta cria um risco significativo de que esses bens sejam desviados e revendidos no mercado informal, estimulando a criminalidade.

3. Responsabilidade por Segurança e Qualidade: Produtos falsificados, por definição, não podem ter a garantia de que passaram por processos afeitos ao controle de qualidade e segurança. Diante desse fato, a proposta de doação pode expor os destinatários a riscos à saúde e à integridade física, gerando um potencial de responsabilização do Estado e de quem os distribuiu.

4. Cadeia de Custódia e Integridade das Provas: A destinação antecipada ou sem um registro adequado pode comprometer a cadeia de custódia e a integridade das provas necessárias para a persecução penal e civil dos ilícitos de contrafação.

5. Conflitos com Normas Setoriais: Há setores como o farmacêutico, alimentício, de brinquedos e eletrônicos, cujos produtos falsificados representam riscos altíssimos à saúde e segurança e são estritamente regulados por ANVISA e INMETRO. A doação desses itens, mesmo em calamidade, pode colidir frontalmente com essas regulamentações.

4) Principais lacunas identificadas
Apesar do sadio e democrático debate social gerado, o texto noticiado do PL apresenta lacunas que precisam ser endereçadas para garantir a eficácia e a segurança da medida:

1. Ausência de definição técnica de “descaracterização”: O termo não tem conceito jurídico imediato, tampouco está definido no PL, o que pode levar a interpretações diversas e a métodos ineficazes para a remoção ou neutralização dos sinais distintivos.

2. Incerteza sobre o momento jurídico da destinação: Não fica claro se a doação pode ocorrer antes da decisão final de perdimento do bem, o que tem implicações diretas sobre a cadeia de custódia e o direito de defesa. Inclusive, acaso seja destinado antes de decisão transitada em julgado, havendo decisão que permita a circulação do bem haverá responsabilidade civil do Estado.

3. Falta de critérios objetivos de elegibilidade/inelegibilidade por categoria de produto e risco: O projeto não estabelece quais tipos de produtos são adequados para doação e quais representam riscos inaceitáveis ou mesmo proibições legais para tanto, demandando destruição obrigatória.

4. Governança e rastreabilidade insuficientes: Não há detalhamento dos mecanismos de controle, das responsabilidades das autoridades envolvidas na destinação e da forma de garantir a rastreabilidade dos produtos doados.

5. Medidas anticorrupção/antidesvio e informação ao público: O projeto não prevê, explicitamente, mecanismos para evitar desvios dos produtos para o mercado ilegal ou para informar claramente os beneficiários sobre a origem e a condição dos itens.

5) Propostas de emenda
Para mitigar os riscos e preencher as lacunas, sugerimos as seguintes emendas ao texto do PL 1.802/2024:

● Regra geral reforçada: “A doação de produtos apreendidos por infração a direitos de Propriedade Industrial observará a prévia e irreversível descaracterização dos sinais distintivos que identifiquem a marca ou qualquer outro elemento protegido, por métodos que garantam a inidoneidade para fins comerciais e que não comprometam a segurança intrínseca do produto.”

● Exceção estrita e controlada: “A doação sem a descaracterização dos sinais distintivos será permitida somente durante calamidade pública reconhecida por ato do Poder Legislativo ou Executivo, restrita exclusivamente a itens de baixo risco, definidos em regulamento técnico específico, e desde que acompanhada de marcação adicional visível e indelével com a frase ‘DOAÇÃO — PROIBIDA A VENDA — NÃO REPRESENTA O TITULAR DA MARCA’ e acondicionada em embalagem neutra que não exiba a marca falsificada.”

● Lista negativa de produtos vedados à doação: “São expressamente vedados à doação e destinados à destruição ou reciclagem, conforme o caso, produtos como medicamentos, alimentos, cosméticos, brinquedos, dispositivos médicos, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) críticos, autopeças de segurança, produtos elétricos/eletrônicos sem certificação ou com risco intrínseco, e outros bens que representem risco à saúde ou segurança, a serem definidos por portaria interministerial conjunta do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do Ministério da Saúde e do Ministério da Economia, com base em avaliação técnica dos órgãos de fiscalização e regulação.”

● Condição para a destinação: “A destinação dos produtos apreendidos para doação ocorrerá após a decisão de perdimento transitada em julgado ou, excepcionalmente, mediante autorização judicial fundamentada e com urgência reconhecida, devendo, em qualquer caso, ser garantida a preservação da prova material, através de laudos periciais, registro fotográfico ou videográfico e guarda de amostragem representativa.”

● Notificação e cooperação técnica do titular da marca: “O titular da marca apreendida será notificado previamente à destinação, facultada a cooperação técnica para a descaracterização dos produtos, sem que isso confira ao titular o poder de veto sobre a doação, mas assegurando sua participação no aprimoramento dos métodos de descaracterização.”

● Rastreabilidade e transparência: “A doação dos produtos será acompanhada de inventário digital detalhado, registrando lote, quantidade, características e o destinatário final. Deverão ser realizados registros fotográficos dos produtos ‘antes e depois’ da descaracterização. Relatórios periódicos de destinação serão publicados em portal da transparência.” ou “Os produtos objeto de doação deverão ser acompanhados de QR Code vinculado à tecnologia blockchain, no qual deverá estar registrado: que são produtos objeto de DOAÇÃO decorrente de calamidade pública reconhecida pelo Poder Legislativo ou Executivo; que é PROIBIDA A VENDA; e que NÃO REPRESENTAM O TITULAR DA MARCA ORIGINAL.”.

● Penalidades por desvio e proibição de venda: “Serão aplicadas as penalidades cabíveis por desvio ou revenda dos produtos doados. A proibição de venda será expressamente informada aos beneficiários, e sua infração configurará crime.”

6) Implementação e governança
Para a efetivação e segurança do processo de doação, a implementação e a governança devem ser claras e robustas:

● Designação de órgão coordenador federal: Um órgão federal, possivelmente o Ministério da Justiça e Segurança Pública, em articulação com o Ministério da Cidadania e Defesa Civil, deve ser designado como coordenador central, estabelecendo um fluxo claro de responsabilidades entre as autoridades.

● Autoridade apreensora: Responsável pela guarda inicial e documentação.

● Órgão técnico de classificação de risco: INMETRO, ANVISA, órgãos metrológicos e de certificação deverão atuar na avaliação da segurança e elegibilidade dos produtos para doação.

● Defesa Civil/Assistência Social: Encarregadas da logística de distribuição aos beneficiários, com controle de entrega e informação, bem como acompanhamento da destinação e uso/doação de todos os itens dados em doação, especialmente
daqueles objeto de doação sem a descaracterização dos sinais distintivos ocorrida durante calamidade pública reconhecida por ato do Poder Legislativo ou Executivo, a fim de que sejam redirecionados para descaracterização eventuais sobras e/ou que seja direcionado para o correto descarte em caso de itens que ficarem a mercê de condições meteorológicas adversas em que o item se torne impróprio para uso”.
Custos e parcerias: Deve-se prever fonte orçamentária para os custos de descaracterização e logística. Incentivos à celebração de acordos de cooperação com os titulares de marcas para apoio técnico e financeiro na descaracterização, desde que sem promoção de marca.

7) Conclusão
O PL 1.802/2024 aborda uma finalidade pública legítima e importante ao buscar otimizar a destinação de bens apreendidos em prol de vítimas de desastres, ao mesmo tempo em que reduz custos e impactos ambientais. Contudo, para que a medida seja verdadeiramente benéfica, é imperativo que o texto seja aprimorado com as salvaguardas necessárias para proteger os direitos de Propriedade Industrial, a saúde e a segurança do consumidor, evitando o desvio dos produtos e assegurar a integridade probatória dos processos judiciais.

A Comissão de Direito da Moda da OAB-SP entende a importância do PL 1.802/2024, entretanto condicionada à incorporação das emendas propostas e à posterior regulamentação técnica detalhada, que definirá os procedimentos operacionais e os critérios específicos para cada tipo de produto.

8) Anexos (orientativos)
1. Quadro-síntese de categorias por risco: Tabela sugerida para classificação de produtos apreendidos (baixo, médio, alto risco) e seu destino padrão (doação com descaracterização, doação em calamidade sob condições, destruição/reciclagem).

2. Checklist de descaracterização por tipo de produto: Guia prático para remoção irreversível de marcas em vestuário e/ou acessórios.

3. Modelo de termo de recebimento com proibição de venda: Documento a ser assinado pelos beneficiários, atestando o recebimento do item e a ciência da proibição de sua comercialização.

De São Paulo para Brasília, 16 de outubro de 2025.

Beatriz Fernandes Genaro
Presidente da Comissão Especial de Direito da Moda da OAB/SP

Carolina Terrão Bolla
Vice-presidente de estudos em Meio Ambiente e ESG da Comissão Especial de Direito da Moda da OAB/SP

Lívia Barboza Maia
Vice-presidente de estudos em Propriedade Intelectual da Comissão Especial de Direito da Moda da OAB/SP

Beatriz Corrêa dos Santos
Membro da Comissão Especial de Direito da Moda da OAB/SP


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