
A progressiva digitalização das relações humanas criou uma falsa expectativa de neutralidade e democratização do espaço virtual. No entanto, a realidade mostra que o ambiente digital reproduz, e amplifica, estruturas históricas de opressão, incluindo a LGBTfobia.
A partir de práticas como o doxxing, a criação de deepfakes, o cyberstalking e a exposição não consentida de dados sensíveis, o espaço online tem sido cooptado por grupos que promovem a exclusão sistemática de sujeitos dissidentes de gênero e sexualidade. Este cenário, embora ainda invisibilizado, configura uma emergência jurídica e institucional.
Violência digital contra pessoas LGBTQIA+
Apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter equiparado a LGBTfobia ao crime de racismo (ADC 26/DF e MI 4733/DF), o enfrentamento da violência digital ainda encontra obstáculos relevantes na tipificação penal e na aplicação prática das leis.
As principais dificuldades identificadas incluem:
● Ausência de previsão específica de crimes como deepfakes não consensuais ou speech bombing com motivação homotransfóbica
● Dificuldade de aplicação da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) em casos de ataques coordenados ou anônimos
● Interpretação restritiva da LGPD (Lei 13.709/2018) em relação à proteção reforçada de dados sensíveis ligados à identidade de gênero e à orientação sexual
● Deficiência na estrutura de delegacias especializadas e falta de capacitação de operadores do Direito para reconhecer e tratar essas condutas como manifestações de violência sistemática
Impactos jurídicos e sociais
Para além dos danos morais e materiais evidentes, a violência digital contra pessoas LGBTQIA+ promove uma forma de expulsão simbólica do espaço público digital, com sérias repercussões jurídicas:
● Supressão de participação democrática: muitas vítimas abandonam redes ou deixam de opinar publicamente por medo de retaliações digitais
● Dano à reputação e à atuação profissional: advogados, influenciadores, artistas e professores LGBTQIA+ têm suas trajetórias minadas por campanhas de difamação e ataques morais
● Erosão de garantias constitucionais: como a liberdade de expressão (CF/88, art. 5º, IV), o livre desenvolvimento da personalidade (art. 1º, III) e a inviolabilidade da honra e da imagem (art. 5º, X)
O projeto Valquírias Digitais
No contexto dessa realidade, a Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial da OAB SP, por meio do projeto Valquírias Digitais, vem construindo uma resposta jurídica e institucional à violência digital de gênero.
Lançado em 2024 e baseado em uma pesquisa nacional com mais de 7.484 respostas, o projeto identifica padrões de agressão online, sistematiza práticas recorrentes e propõe:
● A criação de um marco legal específico para crimes digitais de gênero e sexualidade
● A tipificação de condutas inovadoras, como deepfakes, vazamento de nudes, manipulação de identidade digital e assédio algorítmico
● A inclusão de perspectiva de gênero e diversidade na aplicação da LGPD
● O fortalecimento de canais de denúncia e acolhimento institucional
● A promoção de campanhas educativas e materiais didáticos acessíveis
Responsabilidade jurídica e papel das instituições
É papel da advocacia, do Ministério Público, da magistratura e da própria OAB avançar na formação técnica, teórica e empática sobre o impacto da violência digital na vida de grupos vulnerabilizados.
É necessário que o Direito abandone a postura reativa e reconheça que a LGBTfobia digital não é exceção. O silenciamento, a vigilância, o apagamento e o extermínio simbólico não são fenômenos marginais, mas estruturais. Exigem, portanto, instrumentalização jurídica compatível com sua gravidade e complexidade.
Pela dignidade no ambiente digital
A luta por uma internet segura para todos exige mais do que discursos. Requer produção legislativa, responsabilização das plataformas, proteção de dados sensíveis e fortalecimento de redes de apoio.
Neste mês do orgulho, a Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial da OAB SP, através do projeto Valquírias Digitais, reafirma seu compromisso com a justiça interseccional e convida toda a advocacia a se somar no enfrentamento da violência digital com seriedade, profundidade e ação.